Tuesday, August 26, 2008

Comunicado #11

A Associação para a Anarquia Ontológica conclama um boicote de todos os produtos comercializados sob a senha de LIGHT - cerveja, carne, doces, cosméticos, música, ``estilos de vida'' pré-fabricados, o que for.
O conceito de LIGHT (no jargão situacionista) desdobra um complexo de simbolismo através do qual o Espetáculo espera controlar toda a repulsa contra o seu mercantilismo do desejo. O produto ``natural'', ``orgânico'', ``saudável'', é designado para um setor do mercado constituído por pessoas levemente insatisfeitas que apresentam um quadro mediano de horror do futuro e possuem uma aspiração mediana por uma autenticidade tépida. Um nicho foi preparado para você, suavemente iluminado pelas ilusões de simplicidade, limpeza, elegância, uma pitada de ascetismo e autonegação. Claro, custa um pouco mais... afinal, o que é LIGHT não foi feito para primitivos pobre e famintos que ainda consideram comida nutrição e não décor. Tem de custar mais - senão, você não compraria.

A classe média americana (não sofisme, você sabe o que quero dizer) divide-se naturalmente em duas facções opostas, mas complementares: os exércitos da Anorexia e os da Bulimia. Casos clínicos dessas doenças representam apenas a espuma psicossomática sobre a onda de uma patologia cultural profunda, difusa e amplamente inconsciente. Os que sofrem de bulimia são os yuppies que se fartam com margaritas e videocassetes, e depois se purgam com alimentos LIGHT, jogging e ginástica (an)aeróbica. Os anorexos são rebeldes por um ``estilo de vida'', seguidores da última moda em alimentação, comedores de algas, tristes, desespiritualizados e abatidos - mas presunçosos em seu zelo puritano e em seus instrumentos de autoflagelo com design sofisticado.

A grotesca junk food simplesmente representa o outro lado da vampiresca health food: - nada tem gosto de nada que não seja isopor ou aditivos - tudo é ou entediante ou cancerígeno - ou ambos - e incrivelmente estúpido.

Seja ela crua ou cozida, a comida não pode escapar do simbolismo. Ela é, e simultaneamente também representa, aquilo que é. Toda comida é comida para a alma; ignorar isso é cortejar uma indigestão, tanto crônica quanto metafísica.

Mas na abóbada sem ar da nossa civilização, em que praticamente toda experiência é mediada, em que a realidade é filtrada através da malha mortífera da percepção-consenso, perdemos o contato com a comida como nutrição; começamos a construir para nós mesmos personas baseadas naquilo que consumimos, tratando produtos como projeções da nossa aspiração pelo autêntico.

A AAO às vezes visualiza o CAOS como uma cornucópia de criação contínua, um tipo de gêiser de generosidade cósmica. Portanto evitamos advocar qualquer dieta específica, a última coisa que queremos é ofender a Sagrada Multiplicidade e a Divina Subjetividade. Não vamos azucriná-los com mais uma prescrição New Age para a saúde perfeita (só os mortos têm saúde perfeita); temos interesse pela vida, não por ``estilos de vida''.

Adoramos leveza verdadeira, e o denso e elaborado nos deleitam na sua hora apropriada. O excesso nos cai perfeitamente; a moderação nos agrada, e aprendemos que a fome pode ser o mais fino dos temperos. Tudo é leve, e as flores mais exuberantes crescem ao redor da privada. Sonhamos com mesas falansterianas e com cafés de Bolo’Bolo onde todo grupo festivo de convivas compartilhará a genialidade individual de um Brillat-Savarin (aquele santo do bom gosto).

O xeque Abu Sa'id nunca economizou dinheiro ou mesmo guardou-o de um dia para o outro - portanto, sempre que algum patrono doava uma quantia generosa para a sua fraternidade de religiosos, os dervixes celebravam com uma banquete; e, nos outros dias, todos passavam fome. A idéias era apreciar os dois estados, cheio e vazio...

O produto LIGHT faz uma paródia do vazio espiritual da iluminação, assim como o McDonald's traveste o imaginário da completitude e da celebração. O espírito humano (para não mencionar a fome) pode conquistar e transcender todo esse fetichismo - a alegria pode irromper mesmo num Burger King, e até uma cerveja LIGHT talvez esconda uma dose dionisíaca. Mas por que deveríamos continuar lutando contra esta maré suja de produtos insossos, fajutos e caros, quando poderíamos estar bebendo vinho do Paraíso agora mesmo, sob nossas próprias parreiras e figueiras?

A comida pertence ao reino da vida diária, a arena principal de todo ato insurrecional de tornar-se poderoso, de toda auto-elevação espiritual, de toda retomada do prazer, de toda revolta contra a Máquina Planetária do Trabalho e seus desejos de imitação. Mantenhamo-nos longe de todo dogmatismo. Que o caçador de uma tribo indígena americana possa alimentar sua alegria com um esquilo frito; e o anarco-taoísta, com um punhado de damascos secos. Milarepa, o tibetano, depois de dez anos de sopa de macarrão. Comeu um bolo de manteiga e alcançou a iluminação.

Um bronco não percebe eros nenhum num champanhe fino; um feiticeiro pode se embriagar com um copo d’água.

Nossa cultura, asfixiando-se em seus próprios poluentes, grita (como Goethe gritou por luz ao morrer) ``Mais LIGHT!'' - como se esses efluentes poliinsaturados pudessem de algum modo aliviar nosso sofrimento, como se a sua insossa falta de peso, paladar e características pudesse nos proteger da escuridão crescente.

Não! Esta última ilusão finalmente nos parece cruel demais. Apesar de nossas Próprias tendências indolentes somos forçados a nos posicionar e protestar. Boicote! Boicote! ABAIXO O LIGHT!

Apêndice: Cardápio para um Banquete Negro Anarquista (vegetariano e não vegetariano)

Caviar e blinis, ovos com mais de cem anos; lulas e arroz cozido na tinta; beringelas cozidas com casca com alho preto em conserva; arroz silvestre com nozes negras e cogumelos negros; trufas na manteiga enegrecida; carne de caça marinada em vinho do porto, grelhada no carvão, servida com fatias de pão preto e guarnecida com castanhas assadas. Cuba-libres, Guiness-e-champanhe; chá preto chinês. Musse de chocola- te amargo, café turco, uvas negras, ameixas, cerejas etc.

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