Wednesday, September 26, 2007

Pornografia

Na Pérsia eu vi que a poesia é feita para ser musicada e cantada – por uma razão simples – porque funciona.
Uma combinação perfeita de imagem e melodia coloca o público num hal (algo entre um estado de espírito emocional/estético e um transe de supraconsciência), explosões de choro, impulsos de dança – uma mensurável resposta física à arte. Para nós, a ligação entre poesia e corpo morreu junto com a época dos bardos – lemos sob influência de um gás anestesiante cartesiano.
No norte da Índia, mesmo a recitação não-musical provoca barulho e movimento, todo bom verso é aplaudido, ”Wa! Wa!” com elegantes movimentos de mãos, e rúpias são lançadas – enquanto nós ouvimos poesia como um daqueles cérebros de ficção científica em um vidro – na melhor das hipóteses, um sorriso amarelo ou uma careta, vestígios dos rituais símios – o resto do corpo longe, em algum outro planeta.
No Oriente, às vezes os poetas são presos – uma espécie de elogio, já que sugere que o autor fez algo tão real quanto um roubo, um estupro ou uma revolução. Aqui, os poetas podem publicar qualquer coisa que quiserem – o que em si mesmo é uma espécie de punição, uma prisão em paredes, sem eco, sem existência palpável – reino de sombras do mundo impresso, ou do pensamento abstrato – um mundo sem risco ou eros.
A poesia está morta novamente – e mesmo que a múmia do seu cadáver possua ainda algumas de suas propriedades medicinais, a auto-ressureição não é uma delas.
Se os legisladores se recusam a considerar poemas como crimes, então alguém precisa cometer os crimes que funcionem como poesia, ou textos que possuam a ressonância do terrorismo. Reconectar a poesia ao corpo a qualquer preço. Não crimes contra o corpo, mas contra Idéias (e Idéias-dentro-das-coisas) que sejam letais e asfixiantes. Não libertinagem estúpida, mas crimes exemplares, estéticos, crimes por amor. Na Inglaterra, alguns livros pornográficos ainda estão banidos. A pornografia produz um efeito físico mensurável em seus leitores. Como propaganda, ela às vezes muda vidas por revelar desejos secretos.
Nossa cultura gera a maior parte de sua pornografia motivada pelo ódio ao corpo –
mas, como em certas obras orientais, a arte erótica em si mesma cria um veículo elevado para o aprimoramento do ser/consciência/glória. Um espécie de pornô tântrico ocidental poderia ajudar a galvanizar os cadáveres, fazê-los brilhar com uma pitada de glamour do crime.
Os Estados Unidos oferecem liberdade de expressão porque todas as palavras são consideradas igualmente insípidas. Apenas as imagens contam – os censores amam cenas de morte e mutilação, mas horrorizam-se diante de uma criança se masturbando – para eles, aparentemente, isso é uma invasão de seu fundamento existencial, sua identificação com o Império e seus gestos mais sutis.
Sem dúvida, nem mesmo o pornô mais poético faria o cadáver sem rosto reviver,
dançar e cantar (como o pássaro do Caos chinês) – mas... imagine o roteiro de um filme de três minutos ambientados numa ilha mítica povoada por crianças fugitivas que moram nas ruínas de antigos castelos ou em cabanas-totens e ninhos construídos com detritos – uma mistura de animação, efeitos especiais, computação gráfica e vídeo – editado de forma compacta, como um comercial de fast-food...
... mas insólito e nu, penas e ossos, tendas abotoadas com cristais, cachorros negros, sangue de pombos – vislumbres de membros cor de ˆambar enrolados em lençóis – rostos, cobertos por máscaras cheias de estrelas, beijando dobras macias de pele – piratas andróginos, faces abandonadas de colombinas dormindo em altas flores brancas – piadas sujas de se mijar de tanto rir, lagartos de estimação lambendo leite derramado – pessoas nuas dançando break – banheiras vitorianas com patos de borracha e pintos cor-de-rosa – Alice viajando no pó...
... punk reggae atonal para gamelão, sintetizadores, saxofones e baterias – boogies elétricos cantados por um etéreo coro de crianças – antológicas canções anarquistas, um misto de Hafez & Pancho Villa, Li Po & Bakunin, Kabir & Tzara – chame-o de ”CHAOS – The Rock Video!”
Não... provavelmente é só um sonho. Muito caro para produzir e, além disso, quem o assistiria? Não as crianças a quem ele gostaria de seduzir. A TV pirata é uma fantasia fútil; o rock, outra mera mercadoria – esqueça o malandro gesamtkunstwerk, então. Inunde um playground com obscenos folhetos inflamatórios – propaganda pornô, excêntricos manuscritos clandestinos para libertar o Desejo dos seus grilhões.

Friday, May 18, 2007

Comunicado #7

Paleolitismo Psíquico & Alta Tecnologia

Só porque a AAO (Associação para a Anarquia Ontológica) fala de "paleolitismo" o tempo todo, não fique com a impressão de que queremos nos mandar de volta à Idade da Pedra.

Não temos o menor interesse em "voltar à terra natal", se o pacote de viagem incluir a entediante vida de camponês chutador-de-bosta - nem queremos o "tribalismo", se ele vier com tabus, fetiches & má-alimentação. Não temos nada contra o conceito de cultura - incluindo a tecnologia; para nós, o problema começa com a civilização.

O que gostamos da vida no Paleolítico foi resumido pela escola de antropologia dos povos sem autoridade: a elegante preguiça da sociedade do caçador/coletor, o trabalho de duas horas por dia, a obsessão pela arte, dança, poesia & afetividade, a "democratização do xamanismo", a cultivação da percepção - em suma, a cultura.

O que nós detestamos na civilização pode ser deduzido da seguinte progressão: a "revolução agrícola"; a emergência das castas; a cidade e seu culto do controle hierático ("Babilônia"); escravidão; dogma; imperialismo ("Roma"). A supressão da sexualidade no "trabalho" sob a égide da "autoridade". "O Império nunca terminou."

Um paleolitismo psíquico, baseado na Alta Tecnologia - pós-agrícola, pós-industrial, "Trabalho-Zero", nômade (ou "Cosmopolita Desenraizado") - uma Sociedade de Paradigma do Quantum - essa constitui uma visão ideal do futuro segundo a Teoria do Caos e a "futurologia" (no sentido que Robert Anton Wilson e T. Leary dão para o termo).

Quanto ao presente: rejeitamos todo tipo de colaboração com a civilização da Anorexia & da Bulimia, com pessoas tão envergonhadas de nunca terem sofrido que inventam máscaras penitentes para si mesmas & para os outros - ou aqueles que empanturram-se sem compaixão & depois despejam o vômito de sua culpa suprimida em grandes acessos masoquistas de exercícios & dietas. Todos os nossos prazeres & autodisciplina nos pertencem por natureza - nunca nos negamos, nunca desistimos de nada; mas algumas coisas desistiram de nós e nos deixaram, porque somos muito grandes para elas. Sou ao mesmo tempo o homem da caverna, o mutante das estrelas, o seu conterrâneo & o príncipe livre. Uma vez um chefe indígena foi convidado para um banquete na Casa Branca. À medida que a comida era servida, o chefe encheu seu prato ao máximo possível, não apenas uma, mas três vezes. Enfim, o branquelo sentado ao seu lado disse: "Chefe, he, he, he, você não acha que é um pouco demais?" "Uh", disse o chefe, "um pouco demais é perfeito para o Chefe!"

No entanto, certas doutrinas da "futurologia" continuam problemáticas. Por exemplo, mesmo que aceitemos o potencial libertador das novas tecnologias como a TV, os computadores, a robótica, a exploração espacial etc., ainda percebemos uma grande distância entre potencial e realidade. A banalização da TV, a burguesificação dos computadores & a militarização do espaço sugerem que essas tecnologias, por si só, não oferecem qualquer garantia "específica" para seu uso libertário.

Mesmo se rejeitarmos o holocausto nuclear como apenas mais uma diversão espetacular orquestrada para distrair nossa atenção dos problemas reais, devemos admitir que a "Inevitável Destruição Mútua" & a "Guerra Pura" tendem a diminuir nosso entusiasmo por alguns aspectos da aventura da Alta Tecnologia.

A Anarquia Ontológica mantém sua afeição pelo luditismo como tática: se uma dada tecnologia, não importa o quão admirável em termos de potencial (no futuro), é usada para oprimir-me aqui & agora, então eu devo ou empunhar a arma da sabotagem, ou dominar os meios de produção (ou, talvez mais importante, os meios de comunicação). Não há humanidade sem téchne - mas não há téchne mais valiosa do que minha humanidade.

Desprezamos o anarquismo panaca e antitecnológico - pelo menos, para nós (há aqueles que dizem que gostam da vida do campo) - e rejeitamos também o conceito de uma fixação tecnológica. Para nós, todas as formas de determinismo são igualmente insípidas - não somos escravos nem de nossos genes nem de nossas máquinas. O que é "natural" é aquilo que imaginamos & criamos. "A Natureza não tem leis - apenas hábitos."

Para nós, a vida não pertence nem ao passado - a terra dos famosos fantasmas amontoando seus bens maculados pela cova - nem ao futuro, cujos cidadãos mutantes com cérebro em forma de bulbo guardam com zelo os segredos da imortalidade, do vôo mais rápido que a velocidade da luz, dos genes desenhados artificialmente & do encolhimento do Estado.

Aut nunc aut nihil. Todo momento contém uma eternidade a ser penetrada - no entanto, nos perdemos em visões assimiladas através dos olhos de cadáveres, ou na nostalgia por uma perfeição ainda não-nascida.
As realizações dos meus ancestrais & descendentes não são, para mim, nada mais do que um conto instrutivo e interessante - eu jamais os verei como superiores, mesmo para desculpar minha própria pequenez. Mandarei imprimir para mim mesmo uma licença para roubar deles tudo o que eu quiser - paleolitismo psíquico ou alta-tecnologia - ou, que seja, os belos detritos da própria civilização, os segredos dos Mestres Ocultos, os prazeres da nobreza frívola & la vie boheme.
La decadance. Pelo contrário, Nietzsche, não obstante, possui um papel tão profundo na Anarquia Ontológica quanto a saúde - cada um toma o que quiser do outro. Estetas decadentes não travam guerras estúpidas nem submergem sua consciência no ressentimento & na ganância microcefálicos. Eles buscam aventura na inovação artística & na sexualidade não-ordinária, ao invés de buscá-la na desgraça alheia. A AAO admira & emula sua indolência, seu desdém pela estupidez e normalidade, sua expropriação das sensibilidades aristocráticas. Para nós, essas qualidades harmonizam-se paradoxalmente com aquelas da Idade da Pedra & sua abundante saúde, ignorância de qualquer hierarquia, cultivo da virtu ao invés da Lei. Exigimos decadência sem doença, & saúde sem tédio!

Assim, a AAO oferece apoio incondicional para todos os povos nativos & tribais em sua luta por completa autonomia - &, ao mesmo tempo, para todas as especulações e exigências mais doidas e fora da realidade dos futurologistas. O paleolitismo do futuro (que, para nós, mutantes, já existe) será alcançado em grande escala apenas através de uma massiva tecnologia da Imaginação, e de um paradigma científico que vá além da mecânica quântica, para o reino da Teoria do Caos & das alucinações da ficção especulativa.

Como cosmopolitas desenraizados, reivindicamos todas as belezas do passado, do oriente, das sociedades tribais - tudo isso deve & pode ser nosso, mesmo os tesouros do Império: nosso para compartilharmos. E, ao mesmo tempo, exigimos uma tecnologia que transcenda a agricultura, a indústria, a simultaneidade da eletricidade, um hardware que faça a interseção com o aparelho vivo da consciência, que abrace o poder dos quarks, das partículas viajando no tempo, do quasares & dos universos paralelos.

Cada ideólogo enfurecido do anarquismo & do libertarismo prescreve alguma utopia análoga aos vários tipos de visão que têm, da comuna camponesa à cidade espacial. Nós dizemos, deixemos que um milhão de flores se abram - sem nenhum jardineiro para arrancar ervas daninhas & proibir brincadeiras de acordo com algum esquema moralizante ou eugenista. O único conflito verdadeiro é entre a autoridade do tirano & a autoridade do ser realizado - todo o resto é ilusão, projeção psicológica, verborragia.

Num certo sentido, os filhos e filhas de Gaia nunca deixaram o paleolítico; noutro, todas as perfeições do futuro já são nossas. Apenas a insurreição "resolverá" esse paradoxo - apenas o levante contra a falsa consciência tanto em nós mesmos quanto nos outros vai varrer a tecnologia da opressão & a pobreza do Espetáculo. Nessa batalha, uma máscara pintada ou o chocalho de um xamã podem vir a ser vitais para a captura de um satélite de comunicações ou de uma rede secreta de computadores.

Nosso único critério de julgar uma arma ou uma ferramenta é sua beleza. Os meios já são os fins, de certo modo, a insurreição já é nossa aventura; Tornar-se É Ser. Passado & futuro existem dentro de nós & para nós, alfa & ômega. Não existem outros deuses antes ou depois de nós. Estamos livres no TEMPO - e estaremos livres no ESPAÇO também.

(Nossos agradecimentos a Hagbard Celine, o sábio de Howth & redondezas.)