Tuesday, December 12, 2006

Sedução dos Zumbis Cibernéticos

(Para Konrad e Marie)

Para começar, ajudaria se pudéssemos falar sobre redes no lugar de A Rede (net). Apenas os mais extrópicos crentes nA Net ainda sonham com ela como solução final. Pensadores mais realistas rejeitaram a cyber-soteriologia, mas aceitam a Rede como ferramenta (ou arma) viável. Eles concordariam que outras redes devem ser configuradas e mantidas simultaneamente com "a" Rede - de outra maneira, ela se torna apenas outro meio de alienação, mais envolvente que a TV, talvez, mas de qualquer maneira mais total em sua hipnose.

As outras redes obviamente incluem - primeira e principalmente - padrões de convívio e comunicatividade. Empresto este termo da frenologia do século XIX - aparentemente existe um calombo de comunicatividade em algum lugar no crânio - mas eu o uso para significar algo como o "diálogo" de Bakhtin transposto para o registro do social; onde o convívio implica presença física, a comunicatividade pode também incluir outras mídias. Mas - como o hermetismo nos ensina - o ato positivo do significado comunicativo, seja cara-a-cara (mesmo que sem fala), ou mediado simbolicamente (por texto, imagem, etc.), é sempre confrontado por sua negatividade. Nem toda a "comunicação" comunica, mapa não é território, e assim vai. "Programas interativos" não têm o menor sentido entre seres vivos, mas, de fato, nenhum meio é privilegiado ou completamente aberto. Como Blake poderia dizer, cada meio tem a sua forma e o seu espectro.

O que precisamos, então, é uma "análise espectral" Blakeana da Net. Uma "análise Fourierista" também poderia ser útil (não Fourier o matemático, mas Fourier o Socialista Utópico). Mas estes filósofos eram verdadeiros hermeticistas, enquanto nós podemos apenas colar alguns cacos sobre o que quer que seja.

A questão implícita: - a Net vai além do propósito de comunicatividade, e pode ser usada como ferramenta para "maximizar o potencial para emergir" de situações de convívio? Ou existe um "efeito contraproducente paradoxal" (como Ilich diria)? Em outras palavras: a sociologia das instituições (e.g. educação, medicina) chega à rigidez monopolística e começa a produzir o oposto do efeito pretendido (a educação estupidifica, a medicina faz adoecer). A mídia também pode ser analisada desta maneira. A mídia de massa, considerada como entidade paradoxal, se aproximou de um limite de enclausuramento total pela imagem - uma crise da estase da imagem - e de completo desaparecimento da comunicatividade. O que se considerava que tornava a Net tão singular eram os seus padrões "de-muitos-para-muitos", tendo como implicação a possibilidade de uma democracia popular eletrônica. A Net é uma instituição, pelo menos no sentido lato da palavra. Ela serve ao seu propósito "original", ou há um efeito contraproducente paradoxal?

Outro padrão original dentro da Net é a sua descentralidade (sua herança "militar"); isto lançou a Net numa espécie de guerra com os governos. A Net "cruza fronteiras" como um vírus. Mas nisto a Net partilha certas qualidades com, digamos, as corporações transnacionais ("zaibatsus") - e com o próprio Capital nômade. O "nomadismo" tem sua própria forma e espectro. Como a Nação Islâmica dos Cinco Porcento coloca, "nem todo irmão é um irmão". A molecularidade é uma tática que pode ser usada contra e a favor da nossa autonomia. Estar informado compensa. E podemos ter certeza que a Inteligência Global paga bem por sua informação; - certamente a Net já está completamente penetrada pela vigilância... cada bit de um email é um cartão postal para Deus.

Os nossos exemplos favoritos do uso imaginativo e insurreicionário da Net - o Caso McCalúnia, o Caso da Cientologia, e acima de tudo os Zapatistas - provam que a estrutura descentralizada de muitos-para-muitos tem potencial de verdade [o McDonalds ganhou a batalha mas parece estar perdendo a guerra - as franquias caíram em 50%!]. Ludditas que negam isto simplesmente estão se fazendo parecer desinformados - e muito mal dispostos na direção das boas causas. Os Ludditas originais não eram quebradores de máquina indiscriminados - eles tencionavam defender seus teares manuais e o trabalho em casa contra a mecanização e centralização nas fábricas. Tudo depende da situação, e a tecnologia é apenas um fator numa situação complexa e superestimada. Exatamente o que é que precisa ser esmagado?

O Capital Global abraça abertamente a Net por que a Net parece ter a mesma estrutura do Capital Global. Ele anuncia a Net como O Futuro Agora, e protege os cidadãos virtuais desses governos velhos e maus. Afinal, a Net é mesmo o paradigma de um Mercado Livre, não? O sonho de um Libertário. Mas secretamente o Capital Global [perdoem pela falácia patética - puxa, eu não consigo parar de reificar o Capital...]... secretamente, o Capital Global deve estar doente de preocupação. Bilhões de dólares de investimento foram tragados pela Net, mas a Net parece agir como um astro eclipsado: - há um efeito de penumbra, mas o planeta está negro. Talvez um buraco negro. Afinal, Hawking provou que mesmo buracos negros produzem uma quantidade mínima de energia - alguns milhões de pratas, talvez. Mas essencialmente não há dinheiro circulando na Net, nem dinheiro saindo dela. Parece que a Net pode agir metaforicamente como uma "feira livre" até certo ponto (possivelmente bem mais do que já age) - mas falhou em se desenvolver como um Grande Mercado. A WWW não parece estar ajudando muito neste ponto. A "Realidade Virtual" começa a se parecer com mais um futuro perdido. IntraNets, transmissão personalizada de dados e "televisão interativa" são as estratégias propostas pelos Zaibatsus para colonizar o que resta da Net. O e-cash não parece estar dando conta.

Enquanto isso, a Net toma o aspecto não apenas de uma feira livre sem corpo, mas também de uma favela psíquica. Avatares predatórios - desinformacionistas - dados sobre trabalho escravo nas prisões americanas - cyber-estupro (violação do corpo de dados) - vigilância invisível - ondas de pânico (Pedofilia, Nazistas-na-Net, etc) - invasões massivas de privacidade - propaganda - todo tipo de poluição psíquica. Sem mencionar a possibilidade de lavagem cerebral biônica, sídrome do túnel carpal, e a sinistra presença em cinza e verde das próprias máquinas, como nos cenários dos velhos filmes de ficcção científica (o futuro como design pobre).

De fato, como Gibson previu, a Net já está virtualmente assombrada. Cemitérios na web para cyber-mascotes mortos - obituários falsos - Tim Leary ainda mandando mensagens pessoais - mestres ascensos do "Heaven's Gate" - sem mencionar a já vasta arqueologia da própria Net, os níveis da Arpa, velhas BBSs, linguagens esquecidas, páginas da web abandonadas. De fato, como alguém disse na última conferência da NETTIME em Liubliana, a Net já se tornou um tipo de ruína romântica. E aqui, no nível mais "espectral" da nossa análise, repentinamente a Net começa a parecer... interessante de novo. Uma pitada de horror gótico. A sedução dos Zumbis Cibernéticos. Fin-de-millenium, flores de estufa, láudano.

Enfim.

Vivemos num país em que 1% da população controla metade do dinheiro - num mundo onde menos que 400 pessoas controlam metade do dinheiro - onde 94.2% de todo o dinheiro se refere apenas a dinheiro, não a produção de qualquer tipo (exceto de dinheiro); - um país com a maior população carcerária per capita do mundo, onde "segurança" é a única indústria que cresce (fora a do entretenimento), onde uma insana guerra às drogas e ao meio-ambiente é concebida como a última função válida do governo; - um mundo de ecocídio, agrobusiness, desflorestamento, assassinato de populações indígenas, bioengenharia, trabalho forçado - um mundo construído na afirmação de que o lucro máximo para 500 empresas é o melhor plano para toda a humanidade - um mundo em que a imagem total absorveu e sufocou as vozes e mentes de cada falante - em que a imagem da troca tomou o lugar de todas as relações humanas.

Em vez de resmungar clichês liberais sobre tudo isto - ou levantar a perturbadora questão da "ética" - permita-me simplesmente comentar como um anarquista Stirneriano (um ponto de vista que ainda acho útil depois de todos estes anos): - presumindo que o mundo seja a minha ostra, eu estou em guerra pessoal contra todos os "fatos" acima, por que eles violam os meus desejos e impedem os meus prazeres. Portanto, procuro aliança como outros indivíduos (numa "união de independentes") que partilham de minhas metas. Para os Stirnerianos de esquerda, a tática favorita sempre foi a Greve Geral (o mito Soreliano). Em resposta ao Capital Global nós precisamos de uma nova versão deste mito que possa incluir estruturas sindicalistas mas não se limitar a elas. O velho inimigo dos anarquistas sempre foi o Estado. Ainda temos o Estado para nos preocupar (seguranças no Shopping universal), mas claramente os inimigos reais são os zaibatsus e bancos (o maior erro na história revolucionária foi a falha em dominar o Banco em Paris, 1871). Num futuro muito próximo haverá uma guerra contra a estrutura OMC/FMI/GATT do Capital Global - uma guerra de desespero claro, alimentada por um mundo de indivíduos e grupos orgânicos contra as corporações e "o poder do dinheiro" (i.e., o próprio dinheiro). De preferência uma guerra pacífica, como uma grande Greve Geral - mas realisticamente cada um deve se preparar para o pior. E o que precisamos saber é, o que a InterNet pode fazer por nós?

Obviamente uma boa revolta precisa de bons sistemas de comunicação. Neste momento no entanto eu preferiria transmitir meus segredos conspiratórios (se eu tivesse algum) pelos Correios em vez da Net. Uma conspiração realmente bem-sucedida não deixa rastro em papel, como a Revolução Líbia de 1969 (mas na época, os grampos telefônicos ainda eram bastante primitivos). Mais do que isto, como poderíamos ter certeza que o que vimos na Net era informação e não desinformação? Especialmente se nossa organização existe apenas na Net? Falando como Stirnerita, eu não quero banir assombrações da minha cabeça apenas para encontrá-las de novo na tela. Luta de rua virtual, ruínas virtuais. Não parece uma proposição vantajosa.

Mais perturbador para nós seria a qualidade "gnóstica" da Net, sua tendência à exclusão do corpo, sua promessa de transcendência tecnológica da carne. Mesmo que algumas pessoas tenham "se conhecido pela Net", o movimento geral é rumo à atomização - "caído sozinho em frente à tela". O "movimento" hoje presta muita atenção à mídia em geral por que o poder virtualmente nos iludiu - e dentro do speculum da Net o seu reflexo zomba de nós. A Net como substituto ao convívio e à comunicatividade. A Net como uma má religião. Parte do transe midiático. A comoditização da diferença.

À parte a crítica da Net do ponto de vista da Soberania Individual, nós poderíamos também lançar uma análise de uma posição Fourierista. Aqui no lugar de indivíduos nós consideraríamos a "série", o grupo básico Passional sem o qual cada ser humano permanece incompleto - e o Falanstério, ou Série completa de Séries (mínimo de 1620 membros). Mas a meta permanece a mesma: - o agrupamento ocorre para maximizar os prazeres ou o "luxo" para os membros do grupo, Paixão sendo a única força viável de coesão social (de fato, nesta base nós poderíamos considerar uma "síntese" de Stirner e Fourier, na aparência polarmente opostos). Para Fourier, a Paixão é por definição incorporada; todo o "networking" é mantido via presença física (apesar dele permitir pombos-correio para comunicação entre Falanstérios). Como um místico dos números, Fourier bem que poderia gostar do computador - na verdade ele inventou o "namoro por computador", de certa maneira - mas ele provavelmente desaprovaria qualquer tecnologia que envolvesse a separação física (eu creio que foi Balzac quem disse que para Fourier o único pecado era almoçar sozinho). Convívio no sentido mais literal - idealmente, a orgia. "Atração Passional" funciona por que cada um tem Paixões diferentes: a diferença já é "luxo". O corpo de dados, o corpo na tela, é apenas metaforicamente um corpo. O espaço entre nós - o "medium" - deve ser preenchido com Raios Aromais, zodíacos de luz brilhante (novas cores!), profusões de frutas e flores, os aromas da cozinha gastrosófica - e finalmente o espaço deve ser fechado, curado.

Outra crítica da Net poderia ser feita de uma perspectiva Proudhoniana (Proudhon foi influenciado por Fourier, apesar de fingir que não foi. Ambos eram de Bezançon, como Victor Hugo). Proudhon era mais "progressivo" quanto a tecnologia do que nossos outros exemplos, e seria interessante ver que tipo de papel ele teria para a Net em seu futuro ideal de Mutualismo e anarco-federação. Para ele "governo" era meramente uma questão de administração da produção e troca. Os computadores poderiam se provar como ferramentas úteis sob estas condições. Mas proudhon assim como Marx sem dúvida modificariam sua visão otimista da tecnologia se fossem consultados hoje da sua opinião: - a máquina como poluição social, a própria tecnologia (e por implicação o Trabalho) como alienação. Este argumento foi obviamente feito por Marxistas libertários, anarquistas Verdes, etc. - descendentes legítimos de Marx e Proudhon, como Marcuse ou Ilich. Não seria justo considerar a InterNet (nem a bioengenharia) fora desta crítica da tecnologia. O trabalho de Benjamin, Debord e até Baudrillard (até qele ter caído exausto) torna claro que a imagem total - "a mídia" - tem um papel central nesta crítica. Proudhon questionaria a Net quanto a justiça, e quanto a presença.

Mas eu preferiria focar mais estritamente na questão da imagem. Aqui nós poderíamos retornar a Blake como nosso "martelo filosófico" (Nietzsche queria realmente dar a entender uma espécie de diapasão), uma vez que estamos falando do ídolo, da imagem. Eu argumentaria que estamos sofrendo uma crise de superprodução da imagem. Nós estamos, como Giordano Bruno colocou, "acorrentados", hipnotizados pela imagem. Em tal caso nós precisamos ou de uma dose saudável de iconoclastia, ou então (ou também) um tipo mais sutil de senso crítico hermético, uma liberação da imagem pela imagem. Na verdade, Blake nos supriu com ambos - ele era tanto um esmagador-de-ídolos quanto simultaneamente um hermetista que usava imagens para a libertação, tanto política quanto espiritual. Hermetistas entendem que o "hieróglifo", a imagem/texto ou comunicação mediada (simbólica), tem um efeito "mágico", ultrapassando a consciência racional linear e influenciando profundamente a psiquê. É por isso que Blake dizia que uma pessoa deve fazer seu próprio sistema ou então ser escravo do sistema de outros. A autonomia da imaginação é um alto valor para o hermetismo - e a crítica da imagem é a defesa da imaginação. A tela é um aspecto da imagem que não pode escapar desta "análise espectral" - a mídia como "moedores satãnicos".

Parece que não há mesmo como fugir da tecnologia ou da alienação. A própria techné é prótese da consciência, e portanto inseparável da condição humana (linguagem inclusa aqui como techné). A Tecnologia como a fusão óbvia de techné e linguagem (a ratio ou "razão" da techné) tem sido simplesmente uma categoria da existência humana desde pelo menos o Paleolítico. Mas - podemos perguntar até que ponto o próprio coração foi substituído por um órgão artificial? Até que ponto uma determinada tecnologia "surta" e começa a produzir uma contraprodutividade paradoxal? Se pudéssemos alcançar um consenso nisto, ainda existiria motivo para falar de determinismo tecnológico, ou o maquinismo como destino? Neste sentido, os velhos Ludditas merecem alguma consideração. A techné deve servir ao ser humano, não definir o ser humano.

Precisamos (aparentemente) aceitar a inevitabilidade da consciência, mas apenas na condição de que não será a mesma consciência. Suspeitamos que a consciência racional, maquínica, linear, aufklaerung, universal governou em muito tempo numa tirania - ou "monopólio. Não há nada de errado com a razão (na verdade nós poderíamos usar bem mais dela) mas o racionalismo parece uma ideologia fora de moda. A razão deve dividir o espaço com outras formas de consciência: consciência psicotrópica, ou consciência xamânica (que não tem nada a ver com "religião" como é usualmente definida) - bioconsciência, o discernimento sistêmico do ideal hermético da terra viva - consciência étnica ou cultural, modos diferentes de ver - povos indígenas - ou os Celtas - ou o Islã - consciências de "identidade" de todos os tipos - e consciências de trans-identidade. Uma variedade de consciências parece ser o único campo possível para a nossa ética.

Então, e quanto a consciência da InterNet? Ela tem seus aspectos não-lineares, não tem? Se pode existir uma "racionalidade do maravilhoso", não há um lugar para a Net no banquete?

No fim nós devemos nos contentar com a ambiguidade. Uma resposta "pura" é impossível aqui - iria feder a ideologia. Sim e não.

Mas - "Entre o Sim e o Não, estrelas caem do céu e cabeças voam do pescoço", como o grande sufi Shayk Ibn Arabi disse ao filósofo Aristotélico Averöes.

Uma imagem adequada para uma ruína romântica...

Hakim Bey
NYC
18 de agosto, 1997
BOICOTE À CULTURA POLICIAL!

SE PODEMOS DIZER QUE um personagem ficcional tem dominado a cultura popular atual, esse personagem é o policial. Os meganhas desgraçados estão em todo lugar. É pior do que na vida real. Que chateação incrível.

Policiais poderosos – protegendo os manos & humildes – à custa de mais ou menos meia dúzia de artigos da declaração dos Direitos Civis – “Dirty Harry”. Ótimos policiais, humanos, lidando bem com a perversidade humana, agridoces, você sabe, durões & arrogantes, mas mesmo assim, meigos por dentro: Hill Street Blues – o mais maléfico programa de TV de todos os tempos.

Tiras negros sabichões fazendo observações espirituosas & racistas contra tiras brancos & jecas, mas todos se amando no final – Eddie Murphy, traidor da classe. Numa dessa histórias masoquistas, vemos policiais corrompidos que ameaçam implodir nossa Realidade Konfortável & Konsensual, como tênias solitárias desenhadas por Giger54, mas que naturalmente são detonados na hora H pelo último policial honesto, Robocop, amálgama ideal de próteses & pieguice.

Somos obsediados por policiais desde o início – mas os guardas de outrora atuavam como tolos empavonados. Car 54, Where Are You?55, trouxas feitos na medida para serem arrasados & ridicularizados por Fatty Arbuckle ou Buster Keaton. Mas, no drama ideal dos nossos dias, o “pequeno homem”, que uma vez detonou centenas de varejeiras azuis com aquela bomba anarquista inocentemente usada para acender um cigarro – o Vagabundo, a vítima com o repentino poder do coração puro -, não tem mais um lugar no centro da narrativa. Antes, “nós” éramos aquele vagabundo, aquele herói caótico quase surrealista que, através do wu-wei56, sai-se vitorioso sobre ridículos meganhas de uma Ordem irrelevante & desprezível. Mas, agora, “nós” estamos reduzidos ao status de vítimas sem poder, ou criminosos. Já não representamos o papel principal; já não somos os heróis de nossas próprias histórias, fomos marginalizados & substituídos pelo Outro, o policial.

Dessa forma, o show policial possui apenas três personagens – a vítima, o criminoso & o policial -, mas os dois primeiros não logram ser completamente humanos – apenas o meganha é real. Estranhamente, a sociedade humana de agora (como percebida pelas outras mídias) algumas vezes parece ser constituída pelos mesmos três clichês/arquétipos. Primeiro, as vítimas, as minorias chorosas reclamando por seus “direitos” - &, por deus, quem não pertence a alguma “minoria” hoje? Porra, até mesmo os meganhas reclamaram que seus “direitos” estavam sendo infringidos. Depois, os criminosos: em sua maioria, não brancos (apesar da obrigatória & delirante “integração” mostrada pela mídia), muitos pobres (ou então obscenamente ricos, & portanto ainda mais distantes) & pervertidos (isto é, os espelhos proibidos de “nossos” desejos).

Ouvi dizer que uma em cada quatro casas nos Estados Unidos é assaltada todo ano & que todo ano cerca de meio milhão de pessoas são presas só por fumar maconha. Diante de tais estatísticas (mesmo pressupondo que elas não passam de “mentiras deslavadas”), perguntamos a nós mesmo quem NÃO é vítima ou criminoso em nosso estado-de-consciência-policial. Os detetives policias devem fazer a mediação por todos nós, por mais que a interface seja obscura – eles são apenas sacerdotes-guerreiros, embora profanos.

O America´s Most Wanted – o programa de TV mais bem-sucedido dos anos 1980 – possibilitou para todos nós o papel de tira amador, até então uma mera fantasia da mídia produzida pelos sentimentos de ressentimento & vingança da classe média. Naturalmente, ninguém é mais odiado pelo policial da vida real do que aqueles que resolvem cuidar da própria comunidade – veja o que acontece às iniciativas de autoproteção comunitária de vizinhanças pobres e/ou não brancas, como os muçulmanos que tentaram eliminar o tráfico de crack no Brooklyn: os tiras afugentaram os muçulmanos, os traficantes ficaram livres. Vigias de verdade ameaçam o monopólio do cumprimento da lei, lèse majesté, o que é mais abominável do que incesto ou assassinato.

Mas os vigilantes da mídia (mediados) funcionam perfeitamente bem dentro do estados Policial. De fato, seria mais acurado considerá-los informantes não pagos (eles nem mesmo possuem um conjunto de malas que combinam!): emissários telemétricos, pombos eletrônicos, dedos-duros por um dia.

O que é que a “América mais procura”? Essas frase refere-se aos criminosos – ou a crimes, a objetos de desejo em sua presença real, não representados, não mediados, literalmente roubados & apropriados? A América mais procura... dar um “foda-se” para o trabalho, abandonar o casamento, drogar-se (porque somente as drogas fazem você se sentir tão bem quanto as pessoas que aparecem nos comerciais de TV parecem se sentir), fazer sexo com ninfetas núbeis, sodomia, arrombamentos, sim, o inferno! Quais prazeres não mediados NÃO são ilegais? Até mesmo churrascos ao ar livre violam regulamentos sobre emissão de fumaça, hoje em dia. As diversões mais simples acabam por infringir alguma lei; por fim, o prazer torna-se estressante, apenas a TV permanece - & o prazer da vingança, a traição vicária, a emoção doentia do mexerico. A América não pode ter o que ela mais procura, então, em vez disso, ela tem o America´s Most Wanted. Uma nação de bobalhões ginasianos lambendo o rabo de uma elite de brutamontes ginasianos.

É claro que o programa ainda sofre de algumas poucas & estranhas distorções da realidade: por exemplo, os segmentos dramatizados são interpretados no estilo cinema-verdade por atores; alguns telespectadores são tão estúpidos que acreditam que estão assistindo a uma filmagem real de crimes reais. Por isso, os atores são continuamente importunados & mesmo presos, junto com (ou no lugar de) os verdadeiros criminosos cujas fotos de identificação são exibidas depois de cada pequeno documentóide. Que curioso, não? Ninguém experimenta nada de verdade – todos estão reduzidos ao status de fantasmas – imagens da mídia se descolam & se deslocam de qualquer contato com a vida real de cada dia – telessexo – sexo virtual. A transcendência final do corpo: cibergnose.

Os policiais da mídia, assim como os seus precursores televangélicos, preparam-nos para o advento, a vinda final ou o Êxtase do estado policial – as “guerras” ao sexo & às drogas – controle total & totalmente esvaziado de qualquer conteúdo; um mapa sem coordenadas, em nenhum espaço conhecido; muito além do mero Espetáculo; puro êxtase (“permanêcia-fora-do-corpo”); simulacro obsceno; violentos espasmos sem significado elevados ao último princípio de governo. A imagem de um país consumido por imagens de ódio a si mesmo, guerra entre as metades esquizóides de uma personalidade dividida, Super-Ego contra Id Kid, para o campeonato de pesos pesados de uma paisagem abandonada, queimada, poluída, vazia, desolada, irreal.

Assim como o romance policial é sempre um exercício de sadismo, o seriado policial, sempre envolve a contemplação do controle. A imagem do inspetor ou detetive mede a imagem de “nossa” falta de substância autônoma, nossa transparência ante o olhar fixo da autoridade. Nossa perversidade, nossa impotência. Não importa se o consideramos “bons” ou “maus”, nossa invocação obsessiva dos espectros policiais revela a extensão da nossa aceitação da perspectiva maniqueísta que eles simbolizam. Milhões de meganhas minúsculos formigam em toda parte, como larvas de fantasmas famintos – eles enchem a tela, como no famoso filme de Keaton, abarrotando o primeiro plano, uma Antártica onde nada se move a não ser multidões de sinistros pingüins azuis.

Propomos uma exegese hermenêutica & esotérica do slogan surrealista Mort aux vaches! Não o usamos ao nos referir à morte de policiais individuais (“vacas” na gíria da época) – o que seria uma mera fantasia de vingança esquerdista – sadismo mesquinho às avessas -, mas à morte da imagem do flic, o Controle interior & suas miríades de reflexos no Lugar Nenhum da mídia – o “quarto cinza”, como Burroughs o chama. Autocensura, medo do próprio desejo, “consciência” com a voz interiorizada da autoridade consensual. O assassínio dessas “forças de segurança” de fato libertaria uma enchente de energia libidinosa, mas não a violenta irrupção prevista pela teoria da Lei & da Ordem. A “auto-superação” nietzschiana provê o princípio da organização para o espírito livre (& também para a sociedade anarquista, ao menos em teoria).

Na personalidade do estado policial, a energia libidinosa é represada & desviada para a auto-repressão; qualquer ameaça ao Controle resulta em espasmos de violência. Na personalidade do espírito livre, a energia flui desimpedida & portanto turbulenta, mas gentil – o seu caos encontra o seu estranho atrator, permitindo que novas ordens espontâneas surjam.
Assim, clamamos por um boicote à imagem do Policial & por uma moratória da sua produção na arte. Assim...
Vernissage

Bem, a arte morreu, e agora? Vamos para casa? Algumas possibilidades de transformação na arte e através da arte.

O que é tão engraçado a respeito da Arte?

A Arte foi gargalhada até a morte pelo dada? Ou talvez este sardonicídio se deu ainda antes, com a primeira performance do Ubu Rei? Ou com a gargalhada sarcástica de fantasma-da-ópera do Baudelaire, que tanto perturbava seus bons amigos burgueses?

O que é engraçado a respeito da Arte (apesar de ser mais engraçado-peculiar do que engraçado-haha) é a visão do cadáver que se recusa a cair, este gincana de mortos-vivos, este teatro de marionetes macabro com todas as cordas ligadas ao Capital (um plutocrata inchado tipo Diego Rivera), este simulacro moribundo zumbizando freneticamente por aí, fingindo ser a única coisa viva de verdade em todo o Universo.

Em face de uma ironia como esta, uma duplicidade tão extrema que chega a um abismo intransponível, qualquer poder de cura de uma gargalhada-na-arte tem que ser no mínimo tomado como suspeito, a propriedade ilusória de uma auto-proclamada elite ou pseudo-vanguarda. Para haver uma vanguarda genuína, a Arte deveria estar indo a algum lugar, e há muito tempo já que este não é o caso. Mencionamos Rivera; certamente nenhum outro artista político genuínamente engraçado chegou a pintar em nosso século - mas para que fim? Trotskysmo! A mais morta e sem saída das políticas do século XX! Sem poder de cura aqui - apenas o barulho oco da zombaria sem poder, ecoando através do abismo.

Para curar, é preciso primeiro destruir - e a arte política que falha em destruir o alvo de seu riso acaba fortificando exatamente as forças que pretende atacar. "O que não me mata me deixa mais forte," diz com desprezo a figura suína em sua cartola brilhante (imitando Nietzsche, é claro, pobre Nietzsche, que tentou gargalhar todo o século dezenove até a morte, mas acabou como um cadáver vivo, cuja irmã lhe amarrou cordas em seus membros para fazê-lo dançar para os fascistas).

Não há nada particularmente misterioso ou metafísico sobre o processo. As circunstâncias, a pobreza, certa vez forçaram Rivera a aceitar um trabalho para vir aos EUA e pintar um mural - para Rockfeller! - o próprio arquétipo máximo de leitão da Wall Street! Rivera fez de seu trabalho uma peça gritante de panfletagem comunista - e então Rockfeller a obliterou. Como se isto não fosse engraçado o bastante, a piada de verdade é que Rockfeller poderia ter saboreado a vitória ainda mais docemente sem destruir o trabalho, mas pagando por ele e o exibindo, transformando-o em Arte, esse parasita banguela da decoração de interiores, essa piada.

O sonho do Romantismo: que a o mundo-realidade dos valores burgueses poderia de alguma maneira ser persuadido a consumir, a absorver, uma arte que à primeira vista se parecesse com todo o resto da arte (livros para ler, quadros para pendurar na parede, etc.), mas que secretamente infeccionaria a realidade com algo mais, algo que mudaria a maneira como é vista, viraria a mesa, colocaria no lugar os valores revolucionários da arte.

Este também foi o sonho do surrealismo. Até mesmo o dada, apesar de seu descarado show de cinismo, ainda ousava ter esperanças. Do Romantismo ao Situacionismo, de Blake a 1968, o sonho de cada vitória sobre o ontem se tornou conversinha decorativa de cada amanhã - comprado, mastigado, reproduzido, vendido, consignado a museus, bibliotecas, universidades e outros mausoléus, esquecido, perdido, ressurecto, tornado em loucura nostálgica, reproduzido, vendido, etc., etc., ad nauseam.

Para entender o quanto Cruikshank ou Daumier ou Grandville ou Rivera ou Tzara ou Duchamp destruíram a visão do mundo burguesa de seus tempos, é preciso se enterrar numa tempestade de referências históricas e se alucinar - já que de fato a destruição-pelo-riso foi um sucesso teóríco mas um fracasso na realidade - o peso morto da ilusão falhou em mover uma polegada com a gargalhada histérica, o ataque do riso. Não foi a sociedade burguesa que entrou em colapso no final, foi a arte.

Á luz do trote que foi pregado em nós, é como se o artista contemporâneo fosse colocado entre duas escolhas (uma vez que o suicídio não é uma solução): um, seguir lançando ataque atrás de ataque, movimento atrás de movimento, na esperança de que um dia (logo) "a coisa" vai ficar tão fraca, tão vazia, que vai evaporar e nos deixar sozinhos no campo de batalha; ou dois, começar imediatamente agora a viver como se a batalha já estivesse vencida, como se hoje o artista já não fosse um tipo especial de pessoa, mas cada pessoa um tipo especial de artista (foi isto que os Situacionistas chamaram de "a supressão e realização da arte").

Ambas estas opções são tão "impossíveis" que agir em qualquer uma delas seria uma piada. Não precisaríamos fazer arte "engraçada" por que apenas fazer arte seria engraçado o suficiente para soltar os intestinos. Mas pelo menos seria a nossa piada (quem pode dizer com certeza que falharíamos? "Eu amo não conhecer o futuro" - Nietzsche). Para que possamos começar a jogar este jogo, devemos provavelmente estabelecer certas regras para nós mesmos:

1. Não há questões. Não existe esse negócio de sexismo, fascismo, especismo, visualismo, ou nenhum outra "franquia de questão" que possa ser separada do complexo social e tratada com um "discurso" como um "problema". Há apenas a totalidade que divide todas estas "questões" ilusórias na completa falsidade de seu discurso, fazendo de todas as opiniões, prós e contras, em apenas bens-de-pensamento para serem compradas e vendidas. E esta totalidade é ela própria uma ilusão, um pesadelo maligno do qual estamos tentando (através da arte, do humor, ou de qualquer outro meio) despertar.

2. Tanto quanto possível, qualquer coisa que façamos deve ser feita fora da estrutura psíquica/econômica gerada pela totalidade como o espaço permissível para o jogo da arte. Como, você pergunta, nós ganharemos a vida sem galerias, agentes, museus, publicação comercial, a NEA* e outras agências em benefício das artes? Bem, ninguém precisa pedir pelo improvável. Mas ainda devemos exigir o "impossível" - ou então, por que catzo uma pessoa é artista?! Não é o suficiente ocupar um pedestal sagrado e especial chamado Arte de cima do qual se zomba da estupidez e injustiça do mundo "quadrado". A arte é parte do problema. O Mundo da Arte enfiou sua cabeça na própria bunda, e se faz necessário sair disto - ou então viver em uma paisagem cheia de merda.

3. Claro que se deve "ganhar a vida" de alguma maneira - mas o essencial aqui é viver. Seja o que for que fizermos, qualquer que seja a opção que escolhamos (talvez todas elas), o o quanto nos comprometamos, devemos orar para nunca confundir arte com vida: a Arte é breve, a Vida é longa. Devemos estar preparados para navegar, nomadizar, escorregar de todas as redes, nunca estabilizar, viver através de várias artes, fazer nossas vidas melhores que nossa arte, fazer da arte nosso grito no lugar de nossa desculpa.

4. O riso que cura (em oposição à gargalhada corrosiva e venenosa) pode apenas surgir de uma arte que é séria - séria, mas não sóbria. Morbidez sem sentido, niilismo cínico, tendências de frivolidade pós-moderna, resmungar/praguejar/reclamar/ (o culto liberal da "vítima"), exaustão, hiperconformidade irônica Baudrillardiana - nenhuma destas opções é séria o suficiente, e ao mesmo tempo nenhuma é intoxicada o bastante para servir aos nossos propósitos, muito menos para merecer o nosso riso.

Nota:
* - National Endowment for the Arts, uma entidade governamental americana que financia as artes

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Monday, December 11, 2006

A Arquitectonalidade da Psicogeografia ou os Hieróglifos da Deriva
(in memorian Guy Debord)

Obscuras & misteriosas grutas nas quais eles entram, imitando serpentes - espaços de regresso a uma intimidade que "há muito, muito tempo" foi estilhaçada pela memória - pela simultânea reiteração & lentidão da memória - essa faculdade da consciência humana "próxima do divino". Mas não se diz que "perdoar é humano, esquecer é divino"? Na reiteração ritual ou na lembrança (dhikr)1 dos sufis, esquece-se o "eu" precisamente para anular o Eu; - deste modo re-lembrar é anular a separação, e este apagamento é uma espécie de esquecimento. (Em certos edifícios chave Islâmicos, como o Alhambra, a reiteração do dhikr como texto caligramático, torna-se na própria definição do espaço construído como um dispositivo mnemónico ou "Palácio da Memória" - não ornamento, mas a própria base ou o princípio-da-precipitação-dos-cristais da arquitectura.)
"Desde que nós somos Jesus Cristo" como anunciou um dos Irmãos do celebrado livre Espírito, "a única questão é que aquilo que já é perfeito em nós, deve ser reiterado...". Este processo, todavia, conduz a uma paradoxal des-aprendizagem - e por isso à perda do medo – assim, uma pessoa pode "deixar-se conduzir pelos seus sentidos, como uma criança". Assim, a caverna representa a inconsciência; - o objectivo, contudo, não é perder a inconsciência mas recapturar aquilo de que a inconsciência nos separou, aquilo que a consciência "deturpou". Deste modo, dentro da própria gruta negra da memória, devem ser paradoxalmente inscritos - imagens-chave são reiteradas (literalmente repetidas em alguns casos como num palimpsesto ou por incisivos desenhos sobrepostos) - imagens que representam perda de intimidade, como um panteão de animais ("com os quais é bom pensar")2 - cada animal uma graça especial ou uma função "divina". Assim, a caverna torna-se no primeiro espaço arquitectónico intencional, a intersecção da inconsciência (a beatitude da "Natureza") & consciência (memória, reiteração).

Desde Platão, fomos ensinados a venerar a anamnese - mas recuemos à caverna pré-Platónica, a gruta paleolítica, para recuperar a dialéctica positiva da amnésia - sem a qual a memória se torna simplesmente numa maldição, coagulando por fim como História (o grau zero da memória como asfixia): a primeira cidade (Çatalk Hüyük) já se estrutura em grelha, a própria antítese da estética da gruta disforme, com os seus meandros & espaços extraordinários, estalactites & estalagmites fundidas - a sua organicidade (que se expressa em todo o caso como vida mineral). As cidades de Sumer & Harapa que foram igualmente delineadas como grelhas rígidas, abstracções cruéis de linearidade. Desenhar uma linha é separar, criar uma hierarquia espacial (entre sacerdote & povo, ricos & pobres, excesso & excassez) e para definir o topia da memória contra o obscuro inconsciente da tribo, a caverna utópica, a organicidade selvagem. Aqui, o tertium quid ou coincidentia oppositorium (entre "gruta" & Babilónia) pode aparecer na cidade medieval (que sobrevive ainda em alguns lugares do mundo Islâmico) onde a excessiva crueldade da grelha é apaziguada - não apagada, mas atenuada - pelo registo de um espaço em consonância com o modelo de uma árvore ou do delta de um rio (caótica bifurcação oscilando com complexidade baseada em "atractores estranhos" 3 intra-dimensionais) – um urbanismo do orgânico, da estética, & do complexo ou plural (por oposição ao inorgânico, ideológico, & simples ou total).

A cidade medieval é uma gruta por extrusão. Algumas destas cidades introduziram sumptuosos cortejos alegóricos ou paradas, nas quais grandes complexos de símbolos (composições de hieróglifos) eram construídos & dispostos ou transportados pelo labirinto de ruas. Mitos & lendas eram encenadas - por vezes o Senhor Feudal desempenhava o papel de "Senhor Feudal", vagueando por um palco de ruas, com personagens simbólicas (como Bloom em Nighttown), renovando assim a Cidade como o seu Herói de eleição, submetido à iniciação do casamento ritual com a deusa urbana.

Aqui a Cidade Livre adquire uma consciência sincrónica & lúdica de si mesma hic et nunc, em vez de sucumbir ao diacronismo miserabilista da violência do poder. Nesta Cidade Hermética encontramos o passado/a origem ou o ventre materno dos Livros Simbólicos alquímicos, e a narratividade de um Bosch ou Breughel. Aqui, a memória perde o seu peso & assume um aspecto folclórico, carnavalesco (o festival como reiteração do prazer) com formas construídas que se apropriam (através do desenho ou através dos acidentes de declínio & acreção) das formas de seios, falos, ventres, pedras & água, musgo & flores, até de água & luz.

A cidade-grelha babilónica quer que a memória persista através dos tempos - tempo suave & vazio - mas como mostrou Dali, a memória persiste apenas na deliquescência do tempo medido. A cidade medieval - hermética (como a Green Jerusalém de Blake) preserva a memória mas de uma forma "desordenada" - como compota akashic4 - tempo que é texturado & cheio. "Babilónia" preserva a ordem (ou algo mais) - mas o que acontece aí à memória? Não foi transmutada no venenoso formaldeído da História, o re-iterado da nossa pobreza & do poder deles, mito taxinómico da classe dirigente?
Quem nos pode criticar por albergarmos quer um desejo de insurreição & nostalgia das estreitas e ventosas alamedas, escadas sombrias, ruas cobertas & túneis, estrumeiras & adegas de uma cidade que se projectou a si própria - organicamente, incoscientemente – numa estética de festiva & secreta convivialidade, & da curvilínea mutabilidade neguentrópica da própria memória?

O urbanismo psíquico dos anos 60 constituiu uma outra tentativa de recuperaração da memória construída para este projecto "Romântico" - rus in urbe – como enunciou F. Law Olmstead - "O campo na cidade" – a reintrodução do eterno "barroco" (como na "pérola barroca") 5 ou forma espontânea - (como as miraculosas grutas fungiformes de cinábrio do Taoísmo Mao Shan, criadas pela energia Imaginal do Perito - que é também a "divina" espontaneidade, inconsciência & esquecimento da natureza. Um projecto para os construtores de uma No Go Zone6 do futuro próximo: - a cidade da resistência psicogeográfica, da anti-grelha, da arquitectonalidade da deriva, o espaço de festa - e a Caverna da Memória Fluída. Pedra & água - o devaneio do bardo, o esquecimento dos deuses.

Notas:

1 O “chamamento”; a invocação do nome de Deus; em algumas confrarias misticas, prática ritual de busca colectiva do extase. (N.T.)

2 Ver Levi-Strauss, O Totemismo Hoje, Perspectivas do Homem/Edições 70, Lisboa (p.114): “Compreende-se enfim que as espécies naturais não são escolhidas (como tótemes) por serem ‘boas para comer’ mas porque são ‘boas pra pensar’.” (N.T.)

3 No estudodos sistema dinâmicos um atractor é um ponto, curva ou espaço para onde todas as trajectórias são conduzidas. Um atractor estranho é um atractor sobre o qual as trajectórias vizinhas divergem uma da outra e que tem dimensão fractal. (N.T.)

4 Akashic tem origem no Sânscrito akasa que se refere a uma essência indeterminada como espaço ou etér. Na teosofia refere-se a um sistema de armazenamento universal que regista qualquer pensamento, palavra ou acção que ocorreu desde o inicio do universo. Os registos são feitos numa substância, designada por akasha ou éter sonoro. A palavra akasha tem origem em duas palavras tibetanas: aka, espaço ou lugar de armazenamento e sa-ski, secreto ou oculto. (N.T.)

5 Tipo de pérola com forma irregular. (N.T.)

6 Ver: http://www.hermetic.com/bey/nogozone.html (N.T.)

Tradução de Duarte Soares Lema e Sofia Pereira da Silva
SUPERANDO O TURISMO

Nos Velhos Dias o turismo não existia. Ciganos, Tinkers1 e outros nômades de verdade até hoje vagam por seus mundos à vontade, mas ninguém iria por isso pensar em chamá-los de "turistas".

O turismo é uma invenção do século 19 - um período da história que algumas vezes parece ter se alongado em uma duração não natural. De várias formas, nós ainda estamos vivendo no século 19.

O turista procura Cultura porquê - no nosso mundo - a cultura desapareceu no bucho do Espetáculo, a cultura foi destruída e substituída por um shopping ou um talk-show - porquê a nossa educação é nada mais que a preparação para uma vida inteira de trabalho e consumo - porquê nós mesmos cessamos de criar. Embora os turistas pareçam estar fisicamente presentes na Natureza ou na Cultura, na verdade pode-se chamá-los de fantasmas assombrando ruínas, sem nenhuma presença corpórea. Eles não estão lá de verdade, mas sim movem-se por uma paisagem mental, uma abstração ("Natureza", "Cultura"), coletando imagens mais que experiência. Muito freqüentemente suas férias são passadas em meio à miséria de outras pessoas e até somam-se a essa miséria.

Recentemente algumas pessoas foram assassinadas no Egito só por serem turistas. Contemple... o Futuro. Turismo e terrorismo - qual é mesmo a diferença?

Das três razões arcaicas para viagens - chamemos elas "guerra", "troca" e "peregrinação" - qual deu à luz o turismo? Alguns responderiam automaticamente que deve ser a peregrinação. O peregrino vai "lá" para ver, o peregrino normalmente traz na volta algum souvenir; o peregrino "dá um tempo" na vida diária; o peregrino tem objetivos não-materiais. Assim, o peregrino antecipa o turista.

Mas o peregrino passa por uma mudança na consciência, e para o peregrino essa mudança é real. Peregrinação é uma forma de iniciação, e iniciação é uma abertura para outras formas de cognição.

Podemos detectar algo da diferença entre o peregrino e o turista, contudo, comparando seus efeitos nos lugares que visitam. Mudanças em um local - uma cidade, um santuário, uma floresta - podem ser sutis, mas pelo menos podem ser observadas. O estado da alma pode ser uma questão de conjectura, mas talvez possamos dizer algo sobre o estado do (aspecto) social.

Locais de peregrinação como Meca podem servir como grandes bazares para troca. E eles podem até servir como grandes centros de produção, (como a indústria da seda em Benares) - mas seu "produto" primário é baraka, ou maria. Essas palavras (uma árabe, outra polinésia) são usualmente traduzidas como "benção", mas elas também levam uma carga de outros significados.

O dervixe errante que dorme em um santuário para sonhar com um santo morto (um do "Povo das Tumbas") procura iniciação ou avanço no caminho espiritual; uma mãe que leva uma criança doente a Lurdes procura cura; uma mulher sem filhos no Marrocos espera que o Marabout 2 a torne fértil se ela amarrar um trapo na velha árvore que cresce sobre a cova; o viajante para Meca anseia pelo próprio centro da Fé, e quando a Cidade Sagrada entra no campo de visão das caravanas o hajji entoa "Labbaika Allabumma!" - "Eu estou aqui, Ó Senhor!"

Todos esses motivos são reunidos pela palavra baraka, que às vezes parece ser uma substância palpável, mensurável em termos de aumento de carisma ou "sorte". O santuário produz baraka. E o peregrino leva embora. Mas benção é um produto da Imaginação - e assim não importa quantos peregrinos levem-na embora, sempre há mais. Na verdade, quanto mais eles levam, mais benção o santuário pode produzir (pois um santuário popular cresce com cada prece atendida).

Dizer que baraka é "imaginária" não é chamá-la de "irreal". Ela é real o bastante para aqueles que a sentem. Mas bens espirituais não seguem as regras de oferta e demanda como os bens materiais. Quanto maior a demanda por bens espirituais, maior a oferta. A produção de baraka é infinita.

Em contraste, o turista não deseja baraka, mas diferença cultural. O peregrino - podemos dizer - deixa o "espaço secular" do lar e viaja para o "espaço sagrado" do santuário para experimentar a diferença entre "secular" e "sagrado". Mas essa diferença permanece intangível, sutil, invisível ao olhar "profano", espiritual, imaginária. A diferença cultural, contudo, é mensurável, aparente, visível, material, econômica, social.

A imaginação do "primeiro mundo" capitalista está exaurida. Ela não pode imaginar nada diferente. Então o turista deixa o espaço homogêneo do "lar" pelo espaço heterogêneo dos "climas estrangeiros" não para receber uma "benção", mas simplesmente para admirar o pitoresco, a mera visão ou instantâneo da diferença, para ver a diferença.

O turista consome diferença.

Mas a produção de diferença cultural não é infinita. Ela não é "meramente" imaginária. Tem raízes na linguagem, paisagem, arquitetura, costume, gosto, cheiro. É muito física. Quanto mais ela é desgastada ou levada embora, menos sobra. O social pode produzir só certa quantia de "significado", só certa quantia de diferença. Quando ela acaba, acaba.

No decorrer dos séculos, talvez, um dado lugar sagrado tenha atraído milhões de peregrinos - e ainda assim, de algum modo, apesar de toda a contemplação e admiração e reza e compra de souvenirs - o lugar reteve seu significado. E agora - depois de 20 ou 30 anos de turismo - esse significado se perdeu. Aonde ele foi? Como isso aconteceu?

As verdadeiras raízes do turismo não se encontram na peregrinação (ou mesmo na troca "justa"), mas na guerra. Estupro e pilhagem foram as formas originais de turismo, ou melhor, os primeiros turistas seguiram diretamente rumo à agitação da guerra, como urubus humanos procurando em meio à carniça do campo de batalha por um butim imaginário - por imagens.

O turismo surgiu como um sintoma de um Imperialismo que era total - econômico, político e espiritual.

O que é realmente incrível é que tão poucos turistas tenham sido assassinados por tal mísero punhado de terroristas. Talvez uma cumplicidade secreta exista entre esses reflexos opostos. Ambos são gente sem lugar, soltos de todas as âncoras, à deriva num mar de imagens. O ato terrorista exista apenas na imagem do ato - sem a CNN, sobrevive apenas um espasmo de crueldade sem sentido. E os atos do turista existem apenas nas imagens desse ato, os instantâneos e souvenirs; de outro modo nada resta a não ser as cobranças em cartas de companhias de cartão de crédito e um resíduo de "milhas grátis" de alguma companhia aérea em colapso. O terrorista e o turista são talvez os mais alienados de todos os produtos do capitalismo pós-imperial. Um abismo de imagens os separa dos objetos de seu desejo. De uma forma estranha, eles são gêmeos.

Nada nunca realmente toca a vida de um turista. Todo ato do turista é mediado. Qualquer um que já tenha estemunhado uma falange de americanos ou japoneses que encheriam um ônibus avançando sobre alguma ruína ou ritual deve ter notado que até o olhar coletivo deles é mediado pelo meio do olho multi-facetado da câmera, e que a multiplicidade de câmeras, videocâmeras e gravadores forma um complexo de brilhantes e clicantes escamas em uma armadura de mediação pura. Nada orgânico penetra essa carapaça insetóide que serve tanto como casca protetora quanto como mandíbula predadora, abocanhando imagens, imagens, imagens. No seu extremo essa mediação toma a forma do passeio guiado, em que toda imagem é interpretada por um especialista licenciado, um condutor de almas ou guia dos Mortos, um Virgílio virtual no Inferno da ausência de sentido - um funcionário menor do Discurso Central e sua metafísica da apropriação - um cafetão de êxtases não-corpóreos.

O verdadeiro espaço do turista não é a locação do exótico, mas sim o lugar-sem-lugar (literalmente a "utopia") do espaço mediano, espaço limiar, entre-espaço - o espaço da própria viagem, a abstração industrial do aeroporto, ou a dimensão maquinal do avião ou ônibus.

Então o turista e o terrorista - esses fantasmas gêmeos dos aeroportos da abstração - sofrem uma fome idêntica pelo autêntico. Mas o autêntico se retira sempre que eles se aproximam. Câmeras e armas ficam no caminho daquele momento de amor que é o sonho escondido de todo terrorista e turista. Para sua miséria secreta, tudo o que eles podem fazer é destruir. O turista destrói significado, e o terrorista destrói o turista.

O turismo é a apoteose e a quintessência do "Fetichismo da Mercadoria". É o Cargo Cult3 definitivo - a adoração de "bens" que nunca chegarão, porque foram exaltados, elevados à glória, deificados, adorados e absorvidos, tudo no plano do espírito puro, além do fedor da mortalidade (ou moralidade).

Você compra turismo - você leva nada além de imagens. Turismo, como a Realidade Virtual, é uma forma de Gnose, de desprezo-ao-corpo e transcendência do corpo. A "viagem" turística definitiva terá lugar no Cyberespaço, e será CyberGnose - uma ida e volta ao parinirvana no conforto de sua própria "central de trabalho". Pluga aí, deixa a Terra pra trás!

O modesto objetivo desse livrinho é se dirigir ao viajante individual que decidiu resistir ao turismo.

Ainda que no fim nós descubramos ser impossível "purificar" nós mesmos e nossa viagem de toda mancha e traço do turismo, ainda sentimos que uma melhora pode ser possível.

Nós não apenas desdenhamos o turismo por sua vulgaridade e sua injustiça, e por isso desejamos evitar qualquer contaminação (consciente ou inconsciente) por sua virulência viral - nós também ousamos entender a viagem como um ato de reciprocidade mais que de alienação. Em outras palavras, nós não desejamos meramente evitar as negatividades do turismo, mas ainda mais atingir a viagem positiva, que visualizamos como uma relação produtiva e mutuamente aperfeiçoadora entre eu e outro, hóspede e anfitrião - uma forma de sinergia inter-cultural em que o todo excede a soma das partes.

Nós gostaríamos de saber se a viagem pode ser realizada de acordo com uma economia secreta de baraka, de acordo com a qual não apenas o templo mas também os peregrinos tenham "bençãos" a aspergir.

Antes da Era da Mercadoria, nós sabemos, houve uma Era do Presente, da reciprocidade, do dar e receber. Nós aprendemos isso dos contos de certos viajantes, que encontraram restos do mundo do Presente entre certas tribos, na forma de potlach4 ou trocas rituais, e resgistraram suas observações de práticas tão estranhas.

Não há muito tempo atrás ainda existia um costume entre ilhéus do Mar do Sul de viajar vastas distâncias por canoas apoiadas por bóias, sem compasso ou sextante, com o fim de trocar presentes valiosos e inúteis (objetos de arte cerimoniais ricos em mana) de ilha a ilha num padrão complexo de reciprocidades sobrepostas.

Suspeitamos que muito embora a viagem no mundo moderno parece ter sido apropriada pela Mercadoria - muito embora as redes de reciprocidade convivial pareçam ter sumido do mapa - muito embora o turismo pareça ter vencido - ainda assim - nós continuamos a suspeitar que outros caminhos ainda persistem, outras estradas, não-oficiais, não marcadas no mapa, talvez até mesmo "secretas" - caminhos ainda ligados à possibilidade de uma economia do Presente, rotas de contrabandistas para espíritos livres, conhecidos apenas pelas guerrilhas geomânticas5 da arte da viagem.

Na verdade, nós não apenas "suspeitamos" disso. Nós sabemos disso. Nós sabemos que existe uma arte da viagem.

Talvez os maiores e mais sutis praticantes da arte da viagem tenham sido os sufis, os místicos do Islã. Antes da era dos passaportes, imunizações, linhas aéreas e outros impedimentos à viagem livre, os sufis perambulavam descalços em um mundo onde fronteiras tendiam a ser mais permeáveis que hoje em dia, graças ao transnacionalismo do Islã e à unidade cultural do Dar al-Islam, o mundo islâmico.

Os grandes viajantes islâmicos medievais, como Ibn Battuta e Naser Khusraw, deixaram registros de várias jornadas - da Pérsia ao Egito, ou mesmo do Marrocos à China - que nunca saíam de uma paisagem de desertos, camelos, praças de caravana, bazares, e diligência. Alguém sempre falava árabe, embora mal, e a cultura islâmica permeava os mais remotos lugarejos, embora superficialmente. Ler os contos de Sinbad o Marujo (das 1001 Noites) nos dá a impressão de um mundo onde até a terra incognita era estática - apesar de todas as maravilhas e estranhezas - de algum modo familiar, de algum modo islâmica. Dentro dessa unidade, que ainda não era uma uniformidade, os sufis formavam uma classe especial de viajantes. Não guerreiros, não mercadores, e não muito bem peregrinos ordinários também, os dervixes representam a espiritualização do nomadismo puro.

De acordo com o Corão, a Grande Terra de Deus e tudo nela são "sagrados", não apenas como criações divinas mas também porquê o mundo material está cheio de "indicadores", ou sinais de realidade divina. Ainda mais, o próprio Islã nasce entre duas jornadas , a hijra de Maomé (ou "vôo" de Meca a Medina) e sua hajj, ou viagem de volta. A hajj é o movimento em direção à origem e centro para cada muçulmano até hoje, e a peregrinação anual tem cumprido papel vital não apenas na unidade religiosa do Islã, mas também em sua unidade cultural.

O próprio Maomé exemplifica cada tipo de viagem no Islã: - sua juventude com as caravanas do Verão e do Inverno, de Meca, como mercador; suas campanhas como guerreiro, seu triunfo como um humilde peregrino. Embora um líder urbano, ele também é o profeta do beduíno e ele mesmo é um tipo de nômade, um "hóspede temporário6" - um "órfão". Dessa perspectiva a viagem quase pode ser vista como um sacramento. Toda religião santifica a viagem em algum grau, mas o Islã é virtualmente inimaginável sem ela.

O Profeta disse: "Procure o conhecimento, mesmo longe como a China". Desde o início o Islã eleva a viagem sobre todo o utilitarismo "mundano" e dá a ela uma dimensão epistemológica ou até mesmo gnóstica. "A jóia que nunca deixa a mina nunca é polida", diz o sufi Saadi. "Educar" é "indicar a saída", dar ao pupilo uma perspectiva além da paroquialidade e mera subjetividade.

Alguns sufis podem ter feito todas as suas viagens no Mundo Imaginário dos sonhos arquetípicos e visões, mas um grande número deles tomou as exortações do Profeta bem literalmente. Até hoje dervixes perambulam por todo o mundo islâmico - mas até o século 19 eles perambulavam em verdadeiras hordas, centenas ou até milhares de uma vez, e cobriam vastas distâncias. Todos em busca de conhecimento.

Extra-oficialmente existiam dois tipos básicos de perambulação sufi: o tipo "cavalheiro-acadêmico", e o dervixe mendicante. A primeira categoria inclui Ibn Battuta (que colecionou iniciações sufi da forma que alguns cavalheiros ocidentais já colecionaram graus maçônicos); e - num nível muito mais sério - o "Maior Xeque" Ibn Arabi, que circulou lentamente pelo século 13 de sua nativa Espanha através do norte da África, pelo Egito até Meca e finalmente até Damasco.
Na verdade Ibn Arabi deixou registros de sua procura por santos e aventureiros na estrada, que puderam ser coletados de seus volumosos escritos para formar um tipo de rihla, ou "texto de viagem" (um gênero reconhecido da literatura islâmica), ou autobiografia. Acadêmicos comuns viajaram à procura de textos raros sobre teologia ou jurisprudência, mas Ibn Arabi procurou apenas os mais altos segredos do esotericismo e as mais elevadas "aberturas" para o mundo da iluminação divina; para ele toda "jornada aos horizontes exteriores" era também uma "jornada aos horizontes interiores" da psicologia espiritual a da gnose.

Das visões que experimentou em Meca, apenas, ele escreveu um trabalho de 12 volumes (As revelações de Meca), e também deixou esboços preciosos de centenas de seus contemporâneos, dos maiores filósofos da época a humildes dervixes e "loucos", mulheres anônimas, santos e "Mestres Escondidos". Ibn Arabi gozou de uma relação especial com Khzer, o imortal e desconhecido profeta, o "Homem Verde", que algumas vezes aparece para sufis andarilhos em dificuldade, para resgatá-los do deserto ou para iniciá-los. Khzer, de certa maneira, pode ser chamado de santo padroeiro dos dervixes viajantes - e seu protótipo. (Ele apareceu pela primeira vez no Corão como um andarilho misterioso e companheiro de Moisés no deserto.)

O Cristianismo já incluiu umas poucas ordens de mendicantes andarilhos (de fato, São Francisco organizou uma depois de encontrar com dervixes na Terra Sagrada, que podem tê-lo presenteado com uma "túnica de iniciação" - a famosa túnica de retalhos que ele usava quando voltou à Itália) -, mas o Islã gerou dúzias, talvez centenas dessas ordens.

Enquanto o Sufismo cristalisava da frouxa espontaneidade dos primeiros dias para uma instituição com regras e graus, a "viagem por conhecimento" também foi regularizada e organizada. Manuais elaborados de deveres para dervixes foram produzidos, incluindo métodos para tornar a viagem numa forma de meditação muito específica. Todo o próprio "caminho" sufi foi simbolizado em termos de uma viagem intencional.

Em alguns casos itinerários eram fixados (por exemplo, a Hajj); outros envolviam espera pela aprição de "sinais", coincidências, intuições, "aventuras" como aquelas que inspiraram as viagem dos cavaleiros arturianos. Algumas ordens limitavam o tempo gasto em um lugar a 40 dias; outras fizeram uma regra de nunca dormir duas vezes no mesmo lugar. As ordens severas, como a dos Naqshbandis, transformaram a viagem em um tipo de coreografia em tempo integral, na qual todo movimento era pré-ordenado e feito para aperfeiçoar a consciência.

Em contraste, as orden mais heterodoxas (como a dos Qalandars) adotaram uma "regra" de total espontaneidade e abandono - "desemprego permanente", como um deles chamava - uma distração de poporções boêmias - um "cair fora" ao mesmo tempo escandaloso e completamente tradicional. Vestidos de maneira colorida, carregando suas tigelas de esmola, machados e estandartes, devotos da música e da dança, despreocupados e alegres (algumas vezes ao ponto de serem dignos de repreensão!), ordens como a dos Nematollahis da Pérsia do século 19 cresceram a proporções que alarmaram sultões e teólogos - muitos dervixes foram executados por "heresia". Hoje os verdadeiros Qalandars sobrevivem principalmente na Índia, onde seus desligamentos da ortodoxia incluem a apreciação pela maconha e o sincero ódio ao trabalho. Alguns são charlatães, alguns são simplesmente mendigos - mas um número surpreendente deles parece ser gente de sucesso... como posso colocar isso?... gente de auto-realização, marcada por uma distinta aura de graça, ou baraka.

Todos os tipos diferentes de sub viagem que descrevemos são unidos por certas forças estruturais e vitais compartilhadas. Tal força pode ser chamada de uma visão de mundo "mágica", uma percepção da vida que rejeita o "meramente" aleatório em favor de uma realidade de sinais e maravilhas, de coincidências cheias de significado e "descobertas". E qualquer um que já tenha experimentado isso testemunhará, a viagem intencional imediatamente expõe uma pessoa a essa influência "mágica".

Um psicólogo poderia explicar esse fenômeno (com adoração ou com desdém reducionista) como "subjetivo", enquanto o crente pio o tomaria como literal. Do ponto de vista do Sol nenhuma interpretação domina a outra, nem é suficiente em si mesma, para explicar as maravilhas do Caminho. No sufismo, o "objetivo" e o "subjetivo" não são considerados opostos, mas complementos. Do ponto de vista do pensador bi-dimensional (científico ou religioso) tal paradoxo cheira a proibido.

Outra força subjacente a todas as formas de viagem intencional pode ser descrita pela palavra árabe adab. Em um nível adab significa simplesmente "boas maneiras", e no caso de viagem essas maneiras são baseadas nos costumes antigos dos nômades do deserto, para quem perambulação e hospitalidade são atos sagrados. Nesse sentido o dervixe comparilha tanto os privilégios quanto as responsabilidades do hóspede.

A hospitalidade beduína é uma nítida sobrevivente da economia primordial do Presente - uma relação de reciprocidade. O andarilho deve ser aceito (o dervixe deve ser alimentado) - mas por isso o andarilho assume o papel prescrito pelo costume antigo - e deve dar algo em troca ao anfitrião. Para o beduíno essa relação é quase uma forma de clientagem: - o partir do pão e a partilha do sal constituem uma forma de relação familiar. Gratidão não é uma reação suficiente a tal generosidade. O viajante deve consentir em uma adoção temporária - menos que isso seria uma ofensa ao adab.

A sociedade islâmica retém no mínimo uma ligação sentimental com essas regras, e por isso cria um nicho especial para o dervixe, o do hóspede em tempo integral. O dervixe retribui o presente da sociedade com o presente da baraka. Na peregrinação comum o viajante recebe baraka de um lugar, mas o dervixe reverte o fluxo e traz baraka a um lugar. O sufi pode pensar em si mesmo (ou si mesma) como um peregrino permanente - mas para o povo comum e caseiro do mundo cotidiano o sufi é um tipo de santuário (per)ambulante.

Agora o turismo em sua própria estrutura quebra a reciprocidade entre anfitrião e hóspede. Em inglês, um "hospedeiro" (host) pode ter hóspedes - ou parasitas. O turista é um parasita - pois nenhuma quantia de dinheiro pode pagar por hospitalidade. O verdadeiro viajante é um hóspede e por isso serve a uma função muito real, até hoje, em sociedades nas quais ideais de hospitalidade ainda não desapareceram da "mentalidade coletiva". Ser um anfitrião, nessas sociedades, é um ato meritório. Então, ser um hóspede é também conferir mérito.


O viajante moderno que "pega" o espírito simples dessa relação será perdoado dos muitos lapsos no intrincado ritual do adab (Quantas xícaras de café? Onde se põe os pés? Como ser divertido? Como demonstrar gratidão?, etc), peculiar a uma cultura específica. E se alguém se der ao trabalho de dominar algumas das formas tradicionais do adab, e empregá-las com sinceridade vinda do coração, então tanto hóspede como anfitrião ganharão mais do que colocaram na relação, e esse mais é o sinal inconfundível da presença do Presente.

Outro nível de significado da palavra "adab" a conecta com cultura (já que cultura pode ser vista como a soma de todas as "maneiras" e costumes); na utilização moderna o Departamento de "Artes e Letras" em uma Universidade seria chamado de Adabiyyat. Ter adab, nesse sentido, é ser "polido" (como aquela gema bem viajada) -, mas isso não tem nada a ver necessariamente com "belas artes" ou com ser letrado, ou com ser um urbanóide ou mesmo "culto". É uma questão do "coração".

"Adab" é algumas vezes usado como uma definição-em-uma-palavra para cisma. Mas modos insinceros (ta´arof, em persa) e cultura insincera são igualmente evitados pelos sufi - "Não há ta´arof no Tasssawuf (Sufismo)", como os dervixes dizem; "Darvishi" é um adjetivo sinonímico para informalidade, a qualidade relaxada do povo do Coração - e para adab espontâneo, por assim dizer. Os verdeiros hóspedes e anfitriões nunca fazem um esforço óbvio para cumprir as "regras" da reciprocidade - eles podem seguir o ritual criteriosamente ou podem mudar os modos criativamente, mas em qualquer caso eles darão a suas ações uma profunda sinceridade quem se manisfesta como graça natural. "Adab" é um tipo de amor.

Um complemento dessa "técnica" (ou "Zen") das relações humanas pode ser encontrado na maneira dos sufi de se relacionar com o mundo em geral. O mundo "cotidiano" - da falsidade social e negatividade, das emoções usurárias, da consciência inautêntica ("mauvaise conscience"), grosseria, má vontade, desatenção, reação impulsiva, falso espetáculo, discurso vazio, etc, etc - tudo isso não mais guarda interesse para o dervixe viajante. Mas aqueles que dizem que o dervixe abandonou "esse mundo" - a "Grande Terra de Deus" - estão enganados.

O dervixe não é um gnóstico dualista que odeia a biosfera (que certamente inclui a imaginação e as emoções, assim como a própria "matéria"). Os primeiros muçulmanos ascetas certamente se fecharam para tudo. Quando Rabiah, a santa de Basra, foi convocada para sair de sua casa e "testemunhar as maravilhas das criações de Deus", ela respondeu: "Venham para dentro da casa e vejam-nas", isto é, venham para dentro do coração da contemplação, da unidade que está acima da pluralidade da realidade. "Contração" e "Expansão" são ambos termos sufi para estados espirituais. Rabiah estava manifestando a Contração: um tipo sagrado de melancolia que foi metaforizado como a "Caravana do Inverno", do retorno à Meca (o centro, o coração), da inferioridade e do ascetismo ou auto-negação. Ela não era uma dualista que odiava o mundo, nem mesmo uma puritana moralista inimiga da carne. Ela estava simplesmente manifestando um certo tipo de graça específica.

O dervixe viajante, contudo, manifesta um estado mais típico do Islã em suas energias mais exuberantes. Ele de fato procura a Expansão, alegria espiritual baseada na verdadeira multiplicidade da generosidade divina na criação material. (Ibn Arabi tem uma divertida "prova" de que esse mundo é o melhor mundo - pois, se não fosse, então Deus não seria generoso - o que é absurdo. Q.E.D.7) De modo a apreciar os múltiplos indicadores da Grande Terra precisamente como o desenvolvimento dessa generosidade, o sufi cultiva o que pode ser chamado de olhar teofânico: - a abertura do "Olho do Coração" às experiências de certos lugares, objetos, pessoas, eventos, como locações da passagem do brilho da Luz divina.

O dervixe viaja, por assim dizer, tanto no mundo material como no "Mundo da Imaginação", simultaneamente. Mas para o olho do coração esses mundos se interpenetram em alguns pontos. Pode-se dizer que eles se revelam ou "desvelam" mutuamente. No fim, eles são "um" - e só nosso stado de desatenção hipnotizada, nossa consciência mundana, nos impede de experimentar essa identidade "profunda" a todo momento. O propósito da viagem intencional, com suas "aventuras" e seu desenraizamento de hábitos, é arrebatar o dervixe de todos os efeitos hipnóticos da ordinariedade. A viagem, em outras palavras, é para induzir um certo estado de consciência, ou "estado espiritual" - o da Expansão.

Para o andarilho, cada pessoa que se encontra age como um "anjo", cada templo que se visita pode destrancar algum sonho iniciático, cada experiência da Natureza pode vibrar com a presnça de algum "espírito ou lugar". De fato, até o mundano e ordinário pode de repente ser visto como elevado (como no grande haiku de viagem do poeta Zen japonês Bashô) - um rosto na multidão ou uma estação de trem, corvos em fios telefônicos, brilho do sol em uma poça...

Obviamente ele não precisa viajar para experimentar esse estado. Mas a viagem pode ser usada - isto é, uma arte da viagem pode ser adquirida - para maximizar as chances de atingir tal estado. É uma meditação em movimento, como as artes marciais taoístas. A Caravana do Verão seguia em frente, para fora de Meca, para as ricas tradições da Síria e do Iêmen. Do mesmo modo o dervixe está "movendo-se para fora" (é sempre "dia da mudança"), indo para a frente, partindo, em "feriado perpétuo", como um poeta expressou, com um Coração aberto, um olho atento (e outros sentidos), um desejo por significado, uma sede de conhecimento. Deve-se ficar alerta, já que qualquer coisa pode de repente revelar-se como um sinal. Isso soa como um tipo de "paranóia" - embora "metanóia" talvez seja um termo melhor - e de fato encontra-se "loucos" entre os dervixes, "os atraídos", inundados por influxos divinos, perdidos na Luz. No Oriente os insanos são cuidados e admirados como santos indefesos, porque a "doença mental" algumas vezes pode aparecer como um sintoma de muita santidade mais que de pouca "razão". A popularidade da maconha entre os dervixes pode ser atribuída ao seu poder de induzir um tipo de atenção intuitiva que constitui uma insanidade controlada: - metanóia herbal. Mas a viagem em si pode intoxicar o coração com a beleza da presença teofânica. É uma questão de prática - o polimento da jóia -, de remoção do musgo da pedra rolante.

Nos velhos dias (que ainda estão acontecendo em algumas partes remotas do Leste) o Islã pensava em si mesmo como um mundo inteiro, um mundo vasto, um espaço com grande latitude, dentro do qual o Islã abraçava o todo da sociedade e da natureza. Essa latitude aparecia em nível social como tolerância. Havia espaço o bastante, até para tais grupos marginais como dervixes loucos andarilhos. O próprio sufismo - ou pelo menos sua ortodoxia austera e seu aspecto "sóbrio" - ocupava uma posição central no discurso cultural. "Todo mundo" entendia a viagem intencional pela analogia com a chuva de granizo - todos entendiam os dervixes, mesmo que os disaprovassem.

Hoje em dia, entretanto, o Islã vê a si mesmo com um mundo parcial, cercado de infiéis e hostilidade e sofrendo rupturas internas de toda sorte. Desde o século 19 o Islã perdeu sua consciência global e o senso de sua própria vastidão e completude. Por isso o Islã não pode mais achar facilmente um lugar para todo indivíduo e grupo marginalizado, em um padrão de tolerância e ordem social. Os dervixes agora aparecem como uma diferença intolerável na sociedade. Todo muçulmano deve agora ser o mesmo, unido contra todos os forasteiros e gerados do mesmo protóripo. Claro que os muçulmanos sempre "imitaram" o Profeta e viram Sua imagem como a norma - e isso agiu como uma poderosa força unificadora para o estilo e substância dentro do Dar al-Islam. Mas "hoje em dia" os puritanos e reformadores esqueceram que essa "imitação" não foi dirigida apenas a um mercador do início da Idade Média chamado Maomé, mas também ao insan al-kamil (o "Homem Perfeito" ou "Humano Universal"), um ideal de inclusão mais que de exclusão, um ideal de cultura integral, não uma atitude de pureza em perigo, não uma xenofobia disfarçada de piedade, não o totalitarismo, não a reação.

O dervixe é perseguido hoje em dia na maior parte do mundo islâmico. O Puritanismo sempre abraçou os aspectos mais atrozes do modernismo em sua crusada de despir a Fé de "adesões medievais" como o sufismo popular. E certamente o caminho do dervixe andarilho não pode prosperar em um mundo de aviões e poços de petróleo, de hostilidades nacionalistas/chauvinistas (e por isso de fronteiras impenetráveis), e do puritanismo que suspeita de toda diferença como de uma ameaça. Esse puritanismo triumfou não só no Leste, mas bem perto de casa também. Ele é visto no "tempo da disciplina" do capitalismo-muito-tardio moderno, e na rigidez porosa da hiperconformidade consumista, e também na reação hipócrita e na histeria sexual da "Direita Cristã". Onde, em tudo isso, podemos encontrar espaço para a poética (e parasitária!) vida da Perambulação Sem Rumo - a vida de Chuang Tzu (que cunhou esse slogan) e seus frutos taoístas - a vida de São Francisco e seus devotos descalços - a vida de (por exemplo) Nur All Shah Isfahani, um poeta sufi do século 19 que foi executado no Irã pela horrível heresia do dervixismo andarilho?

Aqui está o outro lado do "problema do turismo": - o problema do deparecimento da "perambulação sem rumo". Possivelmente os dois estão diretamente relacionados, de modo que quanto mais o turismo se torna possível, mais o dervixismo se torna impossível. Na verdade, podemos muito bem perguntar se esse pequeno ensaio sobre a deliciosa vida dos dervixes possui o menor traço de relevância no mundo contemporâneo. Poderá esse conhecimento nos ajudar a superar o turismo, mesmo dentro da nossa própria conciência e vida? Ou é meramente um exercício de nostalgia por posibilidades perdidas - uma indulgência fútil de romantismo?

Bem, sim e não. Claro, eu confesso que sou romântico sem cura sobre a forma da vida dervixe, ao ponto de que por um tempo eu virei minhas costas ao mundo cotidiano e a segui eu mesmo. Porque claro, ela não desapareceu realmente. Decadente sim - mas não desaparecida para sempre. O pouco que eu sei cobre viagens aprendi naqueles poucos anos - tenho um débito com as "adesões medievais" que nunca conseguirei pagar - e eu nunca vou me arrepender do meu "escapismo" por um momento sequer. MAS - eu não considero a forma do dervixismocomo a resposta para o "problema do turismo". A forma perdeu sua eficácia. Não há sentido em tentar "preservá-la" (como se fosse um picles, ou um espécime de laboratório) - não há nada tão patético quanto a mera "sobrevivência".

Mas: por baixo das charmosas formas exteriores do dervixismo está a matriz conceitual, por assim dizer, que nós chamamos de viagem intencional. Nesse ponto nós não deveríamos sofrer nenhuma vergonha da "nostalgia". Nós nós perguntamos se nós queremos e vamos superar "o turista interior", a falsa consciência que nós separa da experiência dos sinais da Grande Terra. O caminho do dervixe (ou do taoísta, ou do franciscano, etc.) nos interessa - finalmente - não só na medida que pode nos prover com uma chave - não A chave, talvez - mas... uma chave. E claro - ele provê.

Uma chave fundamental para o sucesso na Viagem é, claro, a atenção. Nós chamamos de "paying attention" em inglês & "prêter attention" em francês (em árabe, contudo, dá-se atenção), sugerindo que somos tão avaros com nossa atenção quanto somos com nosso dinheiro. Muito frequentemente parece que ninguém está "prestando atenção", que todo mundo está poupando sua consciência - o quê? poupando pros tempos difíceis? - e jogando água nos fogos de conhecimento por medo de todo o combustível disponível seja consumido em um único holocausto de saber intolerável.

Esse modelo de consciência parece suspeitamente "capitalista", contudo - como se de fato nossa atenção fosse um recurso limitado, que uma vez esgotado fosse irrecuperável para sempre. Uma usura de percepção agora aparece: - cobramos juros no nosso pagamento-de-atenção, como se ela fosse um empréstimo mais que um gasto. Ou como se nossa consciência fosse ameaçada por um entrópico "heat-death", contra o qual a melhor defesa deve consistir em um desinteressante estado hipnótico de meia-atenção hesitante - uma miséria de recursos psíquicos - uma recusa de perceber o inesperado ou e saborear a miraculosidade do ordinário - uma falta de generosidade.

Mas e se nós tratássemos nossas percepções como presentes em vez de pagamentos? E se nós déssemos nossa atenção em vez de pagá-la (paying it)? De acordo com a nova lei da reciprocidade, o presente é retribuído com um presente - não há gasto, nem falta, nem débito de capital, nem penúria, nem punição por dar nossa atenção e nem fim para a potencialidade da atenção.

Nossa consciência não é uma mercadoria, nem é um acordo contratual entre o ego cartesiano e o abismo do Nada, nem é simplesmente uma funçãode alguma máquina de carne com uma garantia limitada. Verdade, eventualmente nós nos desgastamos e quebramos. Em um certo sentido a poupança das nossas energias faz sentido - nós nos "poupamos" para os momentos realmente importantes, as descobertas, as "experiências de pico".

Mas se nós vermos a nós mesmos como bolsas de moeda vazias - se nós bloquearmos as "portas da percepção" como camponeses amedrontados pelos uivos de lobos boreais - se nós nunca "prestarmos atenção" - como iremos reconhecer a proximidade e o advento desses momentos preciosos, dessas aberturas?
Nós precisamos de um modelo de cognição que enfatize a "mágica" da reciprocidade: - dar atenção é receber atenção, como se o universo de alguma maneira misteriosa retribuísse nossa cognição com um influxo de graça natural. Se nós nos convencêssemos que a atenção segue uma regra de "sinergia" mais que uma lei de investimento, nós poderíamos começar a superar em nós mesmo a banal mundanidade da desatenção cotidiana, e a abrir nós mesmos a "estados mais elevados".

Em qualquer caso, permanece um fato que a não ser que aprendamos a cultivar tais estados, a viagem nunca vai significar mais que turismo. E para aqueles de nós que ainda não são adeptos da viagem Zen, o cultivo desses estados demanda de fato um gasto inicial de energia. Nós temos inibições a reprimir, hesitações a conquistar, hábitos de introversão e apego aos livros a quebrar, ansiedades a sublimar. Nossa consciência caseira de terceira classe parece segura e aconchegante comparada com os perigos e desconfortos da Estrada, com sua novidade eterna, sua constante demanda pela nossa atenção. O "medo da liberdade" envenena nosso inconsciente, apesar de nosso consciente desejo por liberdade na viagem. A arte que estamos procurando raramente ocorre como um talento natural. Ela deve ser cultivada - praticada - aperfeiçoada. Nós devemos conjurar a vontade da viagem intencional.

É um truísmo reclamar que a diferença está desaparecendo do mundo - e é verdade, também. Mas algumas vezes é incrível descobrir o quão auto-regenerativo e orgânico o diferente pode ser. Mesmo na América, terra dos shoppings e tvs, diferenças regionais não apenas sobrevivem mas sofrem mutações e prosperam nos interstícios, nas fissuras que zigue-zagueiam no monolito, por baixo da atenção do Olhar da Mídia, invisível até para a burguesia local. Se todo o mundo está se tornando unidimensional, nós precisamos olhar entre as dimensões.

Eu penso na viagem como fractal em sua natureza. Ela tem lugar fora do mapa-como-texto, fora do consenso oficial, como aqueles padrões escondidos e encravados que se aninham dentro das infinitas bifurcações das equações não-lineares, no estranho mundo da matemática do caos. Em verdade o mundo não foi completamente mapeado, porque as pessoas e suas vidas cotidianas foram excluídas do mapa, ou tratadas como "estatísticasa sem rosto", ou esquecidas. Nas dimensões fractais da realidade não-oficial todos os seres humanos - e até vários grandes lugares - continuam únicos e diferentes. "Puros" e "não corrompidos"? Talvez não. Talvez ninguém e lugar nenhum já tenham sido realmente puros. A pureza é um fogo-fátuo, e talvez até uma forma perigosa de totalitarismo. A vida é gloriosamente impura. A vida erra.

Nos anos 50 do século 20 os situacionistas franceses desenvolveram uma técnica para viagem que chamam de derive, a "errância". Eles estavam enojados consigo mesmos por nunca deixarem a rotina usual e os caminhos de suas vidas dirigidas pelo hábito; eles perceberam que nunca haviam visto Paris. Começaram a desenvolver expedições aleatórias e sem estrutura pela cidade, caminhando durante o dia, bebendo à noite, abrindo seus próprios mundinhos rígidos para uma terra incognita de favelas, subúrbios, jardins e aventuras. Eles se transformaram em versões revolucionárias do famoso flaneur de Baudelaire, o caminhante ocioso, o sujeito desterrado do capitalismo urbano. A perambulação sem rumo deles virou uma prática de insurreição.
E agora, alguma coisa permanece possível - perambulação sem rumo, a errância sagrada. A viagem não pode ser confinada ao permissível (e agonizante) olhar do turista, para quem o mundo inteiro é inerte, um caroço de pitoresquidade, esperando para ser consumido - porque toda a questão da permissão é uma ilusão. Nós podemos emitir nossos próprios vistos de viagem. Nós podemos nos permitir participar, experimentar o mundo como uma relação viva e não como um parque temático. Nós carregamos dentro de nós mesmos os corações de viajantes, e não precisamos de experts para definir nossas complexidades mais que fractais, para "itnerpretar" por nós, para mediar nossas experiências por nós, para nos vender de volta as imagens de nossos desejos.

A errância sagrada é renascida. Mantenha-na secreta.


Traduzido do "original" Overcoming tourism, disponível em http://www.hermetic.com/bey, por hudz (eu_hudz2@hotmail.com)
Coroa Negra & Rosa Negra - Anarco-Monarquismo e Anarco-Misticismo

Dormindo, sonhamos com apenas duas formas de governo -- anarquia e monarquia. A raiz primordial da consciência não entende de política e nunca joga limpo. Um sonho democrático? Um sonho socialista? Impossível.

Se meus r.e.m.'s me trazem visões verídicas quase proféticas ou meros desejos vienenses, somente reis e pessoas selvagens povoam minha noite. Mônadas e nômades.

Dia pálido (quando nada brilha por sua própria luz) esquiva-se e insinua e sugere que nos comprometemos com uma triste e embaçada realidade. Mas em sonho nós nunca somos governados, exceto pelo amor ou pela magia, que são as habilidades de caotas e sultões.

No meio de um povo que não pode criar ou brincar, mas apenas trabalhar, os artistas também não conhecem outra escolha a não ser anarquia e monarquia.
Como o sonhador, eles devem possuir e possuem suas próprias percepções, e para isto devem sacrificar o meramente social por uma "Musa tirânica". A arte morre quando tratada "bem". Ela deve desfrutar da selvageria de um homem das cavernas ou então ter sua boca preenchida de ouro por um príncipe.
Burocratas e vendedores a envenenam, professores a mastigam e filósofos a cospem fora. A arte é um tipo de barbaridade bizantina, que serve apenas para nobres e pagãos. Se você tivesse conhecido a doçura da vida como poeta num reino de um venal, corrupto, decadente, ineficaz e ridículo Paxá ou Emir, um xá Qajar, um Rei Farouk, uma Rainha da Pérsia, você saberia que isto é o que todo anarquista deve querer. Como eles amavam poemas e pinturas, aqueles tolos luxuriosos mortos, como eles sorviam todas as rosas e brisas frias, tulipas e alaúdes! Odeio sua crueldade e caprichos, sim -- mas pelo menos eles eram humanos. Os burocratas, entretanto, que lambuzam as paredes da mente com sujeira inodora -- tão gentis, tão gemüthlich ["de boa índole"] -- que poluem o ar interior com dormência -- eles não são sequer merecedores de ódio. Eles mal existem fora das Idéias anêmicas às quais servem.

E além disso: o sonhador, o artista, o anarquista -- eles não compartilham um traço de capricho cruel com os mais ultrajantes déspotas? Pode a vida genuína acontecer sem um pouco de tolice, um pouco de excesso, alguns surtos de "discórdia" heracliteana? Não governamos -- mas não podemos e não seremos governados.

Na Rússia, os anarquistas narodnik às vezes forjavam um ukase ou manifesto em nome do Czar; nele, o Autocrata reclamaria que lordes gananciosos e oficiais insensíveis o haviam prendido em seu palácio e o isolado de seu amado povo. Ele proclamava o fim da servidão e convocava os camponeses e trabalhadores a se levantarem em Seu Nome contra o governo.

Muitas vezes esta manobra realmente obtinha sucesso em despertar revoltas. Por que? Porque o único governante absoluto age metaforicamente como um espelho para o singular e completo absoluto do "eu". Cada camponês olhava dentro desta lenda vítrea e observava sua própria liberdade -- uma ilusão, mas que pegava emprestada do sonho a sua lógica.

Um mito similar deve ter inspirado, no século XVII, os Ranters e Antinomianos e Homens da Quinta Monarquia que se congregaram à bandeira jacobita com suas cabalas eruditas e conspirações ufanistas. Os místicos radicais foram traídos primeiro por Cromwell e depois pela Restauração -- por que não, enfim, juntar-se aos petulantes cavaleiros e aos afetados condes, aos Rosacruzes e aos Maçons do Rito Escocês, para colocar um messias oculto no trono de Albion?

No meio de um povo que não pode conceber a sociedade humana sem um monarca, os desejos dos radicais devem ser expressos em termos monárquicos.
No meio de um povo que não pode conceber a existência humana sem uma religião, os desejos radicais devem ser ditos na linguagem da heresia.

O taoísmo rejeitou toda a burocracia confuciana, mas guardou a imagem do Imperador-Sábio, que se sentava em silêncio em seu trono, encarando uma direção propícia, fazendo absolutamente nada. No Islã, os ismaelitas pegaram a idéia do Imame da Casa do Profeta e a metamorfosearam no Imame-do-próprio-ser, o "eu" aperfeiçoado que está além de toda Lei e regra, que está harmonizado com o Uno. E esta doutrina os levou à revolta contra o Islã, ao terror e ao assassínio em nome da auto-libertação esotérica pura e da total realização.

O anarquismo clássico do século XIX definia-se pela luta contra a coroa e a igreja e, portanto, no nível acordado, considerava-se igualitário e ateu. Esta retórica, entretanto, obscurece o que realmente acontece: o "rei" torna-se o "anarquista", o "padre" torna-se um "herege". Neste estranho dueto de mutabilidade, o político, o democrata, o socialista e o ideólogo racional não encontram lugar; são surdos à música e carecem totalmente de senso de ritmo.
Terrorista e monarca são arquétipos; esses outros são meros funcionários.

Uma vez, anarquista e rei apertaram as respectivas gargantas e valsaram uma totentanz ["dança da morte"] -- uma batalha esplêndida. Agora, entretanto, ambos estão relegados à lixeira da história -- eles já eram, são curiosidades de um passado vagaroso e mais cultivado. Eles rodopiam tão rápido que parecem fundir-se juntos... podem ter, de alguma forma, se tornado uma coisa, gêmeos siameses, um Jano, uma unidade aberrante? "O sono da Razão..."
ah! os mais desejáveis e desejosos monstros!

A Anarquia Ontológica proclama rasamente, asperamente e quase desmioladamente: sim, os dois são um agora. Como uma única entidade o anarco/rei agora renasceu; cada um de nós é o governante de nossa própria carne, de nossas próprias criações -- e tudo mais que pudermos pegar e segurar.

Nossas ações são justificadas por decreto e nossas relações são moldadas por tratados com outros autarcas. Fazemos as leis para os nossos próprios domínios -- e as correntes da lei foram quebradas. No momento, talvez sobrevivamos como meros Fingidores -- mas mesmo assim, podemos agarrar uns poucos instantes, uns poucos metros quadrados de realidade sobre a qual impomos nossa vontade absoluta, nosso royaume ["reino"]. L'état c'est moi ["o estado sou eu"].

Se estamos ligados por qualquer ética ou moralidade, deve ser uma tal que nós tenhamos imaginado, fabulosamente mais exaltada e mais libertadora que o "ácido morálico" de puritanos e humanistas. "Vós sois como deuses" -- "Tu és Aquele".

As palavras monarquismo e misticismo são usadas aqui, em parte, simplesmente pour épater ["para espantar"] aqueles anarquistas iguálito-ateus que reagem com horror piedoso a qualquer menção de pompa ou superstição. Nada de revoluções regadas a champanhe para eles!

Nossa marca de anti-autoritarismo, contudo, floresce sobre o paradoxo barroco; ela favorece estados de consciência, emoção e estética sobre todas as ideologias e dogmas petrificados; ela abraça multidões e aprecia contradições. A Anarquia Ontológica é um duende para GRANDES mentes. A tradução do título (e palavra-chave) da obra magna de Max Stirner como "O ego e o que a ele pertence" levou a uma sutil interpretação errônea de "individualismo". O termo inglês-latino "ego" vem carregado e oprimido com bagagem freudiana e protestante. Uma leitura cuidadosa de Stirner sugere que "O Único e seu Próprio" refletiria melhor suas intenções, dado que ele nunca define o ego em oposição à libido ou ao id, ou em oposição à "alma" ou "espírito". O Único (der Einzige) pode ser melhor construído simplesmente como o "eu" individual.

Stirner não se compromete com nenhuma metafísica, ainda que conceda ao Único uma certa propriedade absoluta. De que forma, então, este Einzige difere do "Eu" de Advaita Vedanta? Tat tvam asi: Tu ("Eu" individual) és Aquele ("Eu" absoluto).

Muitos acreditam que o misticismo "dissolve o ego". Bobagem. Apenas a morte faz isso (ou esta, pelo menos, é nossa nossa suposição saducéia). O misticismo não destroi nem o "eu carnal" nem o "eu animal" -- o que importaria em suicídio. O que o misticismo realmente tenta sobrepujar é a falsa consciência, a ilusão, a Realidade Consensual e todas as falhas do "eu" que acompanham estes males. O misticismo verdadeiro cria um "eu em paz", um "eu" com poder. A tarefa principal da metafísica (consumada, por exemplo, por Ibn Arabi, Boehme, Ramana Maharshi) é, em certo sentido, auto-destruir, identificar metafísico e físico, transcendente e imanente, como UM. Certos monistas radicais levaram esta doutrina muito além do mero panteísmo ou misticismo religioso. Uma compreensão da unicidade imanente do ser inspira certas heresias antinomianas (os Ranters, os Assassinos) que consideramos nossas ancestrais.

O próprio Stirner parece surdo às possíveis ressonâncias espirituais do Individualismo -- e nisto ele pertence ao século XIX: nascido muito depois da liquefação da Cristandade, mas muito antes da descoberta do Oriente e da tradição iluminista escondida na alquimia ocidental, da heresia revolucionária e do ativismo oculto. Stirner despreza muito corretamente o que ele conhecia como "misticismo", uma reles sentimentalidade pietista baseada em auto-negação e ódio pelo mundo. Nietzsche pregou a tampa sobre "Deus" uns poucos anos antes. Desde então, quem ousou sugerir que Individualismo e misticismo poderiam ser reconciliados e sintetizados?

O ingrediente faltante em Stirner (Nietzsche chega mais perto) é um conceito funcional de consciência não-ordinária. A realização do "eu" único (ou übermensch ["super-homem"]) deve reverberar e expandir-se como ondas ou espirais ou música para abraçar a experiência direta ou a percepção intuitiva da singularidade da própria realidade. Essa realização engolfa e apaga toda dualidade, dicotomia e dialética. Carrega consigo mesma, como uma carga elétrica, um sentido de valor intenso e sem palavras: ela "diviniza" o "eu".

Ser/consciência/felicidade (satchitananda) não pode ser repudiado como meramente outro "fantasma" stirneriano ou "roda na cabeça". Não invoca exclusivamente nenhum princípio transcendente para o qual o Einzige deve sacrificar sua qualidade de próprio. Simplesmente declara que aquela intensa consciência da própria existência resulta em "felicidade" -- ou, numa linguagem menos pesada, em "consciência valorativa". O objetivo do Único, afinal, é possuir tudo; o monista radical obtém isso identificando o "eu" com a percepção, como o pintor chinês que "se torna o bambu", de forma que "ele pinta a si próprio".

Apesar das dicas misteriosas que Stirner dá sobre uma "união de Únicos" e apesar do eterno "Sim" de Nietzsche e da exaltação da vida, o Individualismo deles parece de alguma forma moldado por uma certa frieza em relação ao outro. Em parte, eles cultivavam uma fortificante e purificadora frieza contra a sufocação quente da sentimentalidade e do altruísmo do século XIX; em parte, eles simplesmente desprezavam o que alguém (Mencken?) chamou de "Homo Boobensis".

E ainda, lendo por trás e abaixo da camada de gelo, nós descobrimos traços de uma doutrina ígnea -- o que Gaston Bachelard poderia ter chamado de "uma Poética do Outro". A relação do Einzige com o Outro não pode ser definida ou limitada por qualquer instituição ou idéia. E ainda claramente, mesmo que paradoxalmente, o Único depende do Outro para a completude e não pode e não será realizado em nenhum isolamento amargo.

Os exemplos de "crianças lobos" ou enfants sauvages ["crianças selvagens"] sugerem que uma criança humana privada da companhia humana por muito tempo nunca obterá humanidade consciente -- nunca adquirirá linguagem. A Criança Selvagem talvez forneça uma metáfora poética para o Único -- e simultaneamente, ainda, marque o ponto exato em que Único e Outro devam se encontrar, se amalgamar, se unificar -- ou então falham em obter e possuir tudo aquilo de que são capazes.

O Outro espelha o "Eu" -- o Outro é nossa testemunha. O Outro completa o "Eu" -- o Outro nos dá a chave para a percepção da unicidade-do-ser. Quando falamos de ser e consciência, nós apontamos para o "Eu"; quando falamos de felicidade implicamos o Outro.

A aquisição da linguagem cai sob o signo de Eros -- toda comunicação é essencialmente erótica, todas as relações são eróticas. Avicenna e Dante afirmaram que o amor move as estrelas e os planetas em seus cursos -- o Rig Veda e a Teogonia de Hesíodo proclamam que o Amor é o primeiro deus nascido depois de Caos. Afeições, afinidades, percepções estéticas, belas criações, sociabilidade -- todas as mais preciosas possessões do Único erguem-se da conjunção do "Eu" com o Outro na constelação do Desejo.

Novamente, o projeto iniciado pelo Individualismo pode ser desenvolvido e revivificado por um enxerto com o misticismo -- especificamente com o tantra.
Como uma técnica esotérica divorciada do hinduísmo ortodoxo, o tantra fornece uma estrutura ("Rede de Jóias") simbólica para a identificação do prazer sexual e consciência não-ordinária. Todas as seitas antinomianas continham algum aspecto tântrico, desde as famílias do Amor e Irmãos Livres e Adamitas da Europa até os sufis pederastas da Pérsia e os alquimistas Taoístas da China. Até mesmo o anarquismo clássico desfrutou seus momentos tântricos: os Falanstérios de Fourier; o "Anarquismo Místico" de G. Ivanov e outros russos simbolistas de fim-de-século; o erotismo incestuoso do Sanine de Arzibashaev; a estranha combinação de Niilismo e adoração a Kali que inspirou o Partido Terrorista Bengalês (ao qual meu guru tântrico Sri Kamanaransan Biswas teve a honra de pertencer)...

Nós, entretanto, propomos um sincretismo de anarquismo e tantra muito mais profundo que qualquer um desses. De fato, simplesmente sugerimos que Anarquismo Individual e Monismo Radical sejam considerados doravante como um e mesmo movimento.

Este híbrido tem sido chamado de "materialismo espiritual", um termo que incinera toda a metafísica no fogo da unidade de espírito e matéria. Também gostamos de "Anarquia Ontológica" porque sugere que o ser em si mesmo permanece num estado de "Caos divino", de total potencialidade, de criação contínua.

Neste fluxo, somente o jiva mukti, ou "indivíduo liberto", é auto-realizado, e deste modo monarca ou proprietário de suas percepções e relações. Neste fluxo incessante, somente o desejo oferece um princípio de ordem, e assim a única sociedade possível (como Fourier entendeu) é a dos amantes.

O anarquismo está morto, vida longa à anarquia! Não precisamos mais da bagagem de masoquismo revolucionário ou auto-sacrifício idealista -- ou da frigidez do Individualismo com seu desdém pela sociabilidade, pelo viver junto -- ou das superstições vulgares do ateísmo do século XIX, cientificismo e progressismo. Todo esse peso morto! Pastas proletárias emboloradas, vapores burgueses pesados, entediantes guias filosóficos -- deixemos isso de lado!

Queremos desses sistemas apenas sua vitalidade, suas forças vitais, ousadia, intransigência, raiva, negligência -- seu poder, seu shakti. Antes de descartarmos o entulho e os sacos de lixo, nós saquearemos a bagagem procurando por carteiras, revólveres, jóias, drogas e outros itens úteis -- guardaremos o que gostamos e jogaremos fora o resto. Por que não? Por acaso somos padres de um culto, para murmurar sobre relíquias e resmungar nossos martirológios?

O monarquismo também tem algo que queremos -- um encanto, um sossego, um orgulho, uma superabundância. Ficaremos com isto e jogaremos as aflições da autoridade e da tortura na lata de lixo da história. O misticismo tem algo que precisamos -- "auto-superação", consciência exaltada, reservatórios de potência psíquica. Estes nós expropriaremos em nome da nossa insurreição -- e deixaremos as aflições da moralidade e da religião apodrecer e se decompor.

Como os Ranters costumavam dizer quando saudavam qualquer "criatura companheira" -- de rei a batedor de carteiras -- "Alegre-se! Tudo é de todos!"
Ataque Oculto às Instituições

Os níveis da organização imediatista:

1) O encontro. Pode ser qualquer coisa desde uma festa a uma revolta. Pode ser planejado ou não-planejado mas depende da espontaneidade para "realmente acontecer". Exemplos: encontro anarquista, celebração neopagã, Rave, revolta urbana breve ou demonstração espontânea. Os melhores encontros, é claro, tornam-se TAZ's, tais como algumas das Be-Ins dos anos 60, os primeiros encontros da tribo Rainbow ou a revolta de Stonewall.

2) O potlach horizontal. Uma única reunião de um grupo de amigos para a troca de presentes. Uma orgia planejada pode entrar nesta categoria, sendo o presente o prazer sexual - ou um banquete, sendo o presente a comida.

3) A Bee. Como uma quilting bee, a Bee Imediatista consiste em um grupo de amigos encontrando-se regularmente para colaborar em um projeto específico. A Bee pode servir como um comitê de organização para um encontro ou um potlach, ou como uma colaboração criativa, um grupo de afinidade para ação direta, etc. A Bee é como uma série passional no sistema de Fourier: um grupo unido por uma paixão compartilhada que só pode ser realizada pelo grupo.

4) Quando a Bee adquire um grupo de membros mais ou menos permanente e um propósito maior do que somente um único projeto - um projeto em andamento, vamos dizer -, ela pode tanto se tornar um "clube" como uma gesellschaft organizada não-hierarquicamente para atividades abertas, ou, ainda, como uma "Tong" organizada de forma não hierarquica mas clandestina para atividades secretas. A Tong é de interesse mais imediato para nós agora por questões táticas, e também porque o clube opera sob o risco de "instituicionalização" e, portanto, (nos termos de Ivan Illich) em "contra-produtividade paradoxal". (Quer dizer, como a instituição aproxima-se da rigidez e do monopólio, ela começa a ter o efeito oposto ao seu propósito original. Sociedades fundadas para a "liberdade" tornam-se autoritárias, etc.). A Tong tradicional também está sujeita a esta trajetória, mas a Tong Imediatista é construida, por assim dizer, para se autodestruir quando não for mais capaz de servir ao seu propósito.

5) A TAZ pode surgir de uma ou de todas as formas mencionadas acima de maneira individual, em sequência ou em um padrão complexo. Ainda que eu tenha dito que a TAZ pode ser breve como um noite ou longa como alguns anos, esta é apenas uma regra rígida, e provavelmente a maioria dos exemplos se situe entre os dois citados. Uma TAZ é maior do que qualquer uma das quatro formas. Entretanto, enquanto dura, ela preenche o horizonte de atenção de todos os seus participantes; ela se torna (apesar de breve) uma sociedade completa.

6) Enfim, na sublevação, a TAZ quebra suas próprias fronteiras e flui (ou deseja fluir) através do "mundo todo", o inteiro tempo/espaço imediato disponível. Enquanto o levante dura e não se vê derrotado ou transformado em "Revolução" (que aspira à permanência), a Inssurreição mantém a consciência da maioria dos seus entusiastas, espontaneamente ligados àquele outro modo elusivo de intensidade, clareza, atenção, realização individual e do grupo, e, para ser franco, àquela felicidade tão característica de grandes revoltas sociais tais como a Comuna ou Maio de 68. De um ponto de vista existencial (e aqui evocamos Stirner, Nietzsche e Camus), essa felicidade é, de fato, o propósito da sublevação.

Os objetivos da organização Imediatista são:

a) Convivência: a reunião em uma proximidade física do grupo para o aprimoramento sinergético do prazer de seus membros.

b) Criação: a produção em colaboração, direta e não-mediada, da beleza necessária, fora das estruturas de hipermediação, alienação e commoditização.
Já estamos bastante cansados de insistir nos pequenos detalhes dos termos. Se você não sabe o que nós queremos dizer por "beleza necessária", pode muito bem parar de ler por aqui. A "Arte" é apenas uma possível subcategoria deste mistério e não necessariamente a mais vital.

c) Destruição: Nós deveríamos ir além de Bakunin e dizer que não existe criação sem destruição. A noção de trazer alguma beleza nova para a existência implica em descartar ou explodir toda a velha fealdade. A beleza define-se em parte (mas precisamente) pela destruição da fealdade a qual não é ela mesma. Em nossa versão do mito soreliano da violência social, nós sugerimos que nenhum ato Imediatista é completamente autêntico e efetivo sem a criação e a destruição: toda a dialética Imediatista está implicada em qualquer "ação direta" Imediatista, tanto na criação-na-destruição, como na destruição-na-criação. Daí o "terrorismo poético", por exemplo. Logo, o objetivo real ou o telos de todas as nossas formas organizacionais é:

d) A construção de valores. O "pico de experiência" masloviano forma valores em nível individual; a concretude existencial da Bee, Tong, TAZ ou sublevação permite a "reavaliação de valores" para fluir desde sua intensidade coletiva. Outra forma de colocar isto: a transformação da vida cotidiana.

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A ligação entre a organização e o seu objetivo é a tática. Em termos simples, o que a faz a organização Imediatista? Nossa estratégia é a de otimizar as condições para a emergência da TAZ (ou até mesmo da Inssurreição). Mas, quais são as ações específicas que podem ser levadas a cabo para a construção dessa estratégia? Sem tática, a organização Imediatista pode muito bem se dispersar. A "ação direta" deve complementar o "causa" assim como deve, por ela mesma, manter todo o potencial para o desabrochar da causa por ela mesma.

De fato, cada ato deve estar in potentia tanto apontado para o objetivo, como ser idêntico a ele. Nós não podemos utilizar táticas que estão limitadas à mediação. Cada ação deve imediatamente compreender o objetivo, pelo menos em algum aspecto, a menos que nós estejamos trabalhando por abstrações e, até mesmo, simulações de nosso propósito. E todas as diferentes táticas e ações deveriam, ainda, adicionar mais do que a soma de suas partes; deveriam dar vida à TAZ ou à sublevação. Assim como organizações ordinárias não podem nos fornecer as estruturas de que necessitamos, as táticas ordinárias não podem satisfazer nossa demanda por "situações" insurretas e imediatas.

Convivência é tanto uma tática como um objetivo. Nobre em si mesma, ela pode servir tanto como uma forma ou como um conteúdo para modos de organização, tais como o encontro, o potlach, o baquete. Mas a convivência em si não possui a energia de transformação que geralmente surge somente de um complexo de ações, as quais incluem o que nós chamamos de "destruição" assim como "criação". A organização Imediatista ideal aponta para esse objetivo mais complexo, e assume a convivência como uma estrutura necessária.

Em outras palavras, encontrar-se com um grupo para planejar uma potencial TAZ para um grupo ainda maior já é um ato Imediatista que envolve convivência - como o reino dos céus, é reunido todo esforço sincero para descobertas mais elevadas. Parece, entretanto, que a quintessência do ato ou tática Imediatista envolverá criação e destruição de forma simultânea, ao invés de apenas convivência - daí resulta que a Bee e a Tong são formas organizacionais mais "altas" do que o encontro e o potlach.

Na Bee, a ênfase está na criação - a colcha de retalhos, por assim dizer - o projeto de arte colaborativo, o ato de generosidade do grupo direcionado a si mesmo e a realidade ao invés de ser direcionado a uma "audiência" de consumidores mediados. A Bee pode, é claro, considerar e empregar ações destruitivas ou "criminosas". Mas quando ela o faz, talvez já tenha dado o primeiro passo para tornar-se uma sociedade secreta ou uma Tong Imediatista.

Por essa razão eu acho que a Tong é a mais complexa (ou a mais "alta") forma de organização Imediatista, a qual pode ser pre-determinada em um nível significante. A TAZ e a sublevação dependem, em última instância, de muitos fatores que, no processo organizacional, devem ser alcançados sem "sorte". Como eu tenho dito, nós podemos maximizar as possibilidades para a TAZ ou a Insurreição, mas não podemos "organizá-las" realmente ou fazê-las acontecer. A Tong entretanto pode ser claramente definida e organizada para levar a cabo ações complexas, tanto materiais como simbólicas, tanto criativas como destrutivas. A Tong não pode garantir a TAZ, tampouco a Insurreição, mas ela pode certamente satisfazer muitos - ou a maioria - dos desejos imediatos de menor complexidade. E, no final das contas, ela pode ter sucesso em precipitar o grande evento da TAZ, a Comuna, a restauração Ming como o grande festival da Consciência, o objetivo correlato de todo desejo.

Vamos tentar imaginar e então criticar - mantendo tudo isso em mente - táticas possíveis para o grupo Imediatista, e idealmente para toda a Tong semi-permanente e bem-organizada, para uma rede de afinidade ou para um grupo de ação clandestina, capaz de tentar ações diretas complexas, completamente evoluídas, em uma estratégia articulada. Cada uma dessas ações deve, simultâneamente, danificar ou destruir algum tempo/espaço real ou imaginário do "inimigo", mesmo que isso simultaneamente crie para seus perpetradores a forte chance do pico de experiência ou "aventura". Logo, cada tática, em um sentido, move-se para apropriação e a deslocamento do espaço do inimigo, eventualmente, para ocupá-lo e transformá-lo. Cada tática ou ação já é potencialmente o caminho completo da autonomia em si, da mesma forma que a evocação do Real já contém a completude do caminho espiritual (de acordo com a "gnosis" do Ismailismo e do sufismo heterodoxo).

Mas espere! Primeiro: quem é o inimigo? Tudo bem cochichar sobre as conspirações do Establishment ou das redes de controle psíquico. Nós estamos falando sobre ações diretas em tempo real que devem ser levadas a cabo contra nodos identificáveis de poder em tempo real. A discussão sobre inimigos abstratos, como o Estado, não vai nos levar a lugar algum. Eu não sou oprimido (ou alienado) diretamente por nenhuma entidade concreta chamada Estado, mas por grupos específicos tais como professores, a polícia, os chefes, etc. Uma "Revolução" pode objetivar a derrubada do "Estado". No entanto, a Insurreição e todos os seus grupos de ação Imediatistas terão de descobrir algum alvo que não seja uma idéia, um pedaço de papel, uma assombração que nos acorrenta aos nossos próprios sonhos ruins sobre poder e impotência. Sim, nós vamos lutar na guerra de imagens. Mas as imagens surgem e fluem através de nexos específicos. O espetáculo tem uma estrutura e a estrutura tem juntas, cruzamentos, padrões, níveis. O espetáculo talvez até tenha - algumas vezes - um endereço. Ele não é real como a TAZ é real. Mas é real o suficiente para um ataque.

Como os textos imediatistas têm sido amplamente endereçados aos "artistas" assim como aos "não-autoritários", e como o Imediatismo não é um movimento político mas um jogo, seria óbvio procurarmos pelo inimigo na mídia, especialmente naquela mídia que nós consideramos diretamente opressora. Por exemplo, para o estudante, a mídia opressora e alienante é a "educação", e o nexo (o ponto de pressão) deve ser, pois, a escola. Para o artista, a fonte direta de alienação é vista como o complexo que nós geralmente chamamos de Mídia, a qual tem usurpado o tempo e o espaço da arte tal como nós desejaríamos praticá-la, a qual tem redefinido todas as formas de comunicação criativa para uma troca de commodities ou imagens alienantes, a qual tem envenenado o "discurso".

No passado, a mídia alienante foi a igreja, e a insurreição expressava-se na linguagem da espiritualidade herética versus a religião organizada. Hoje, a Mídia assume o papel da Igreja na circulação das imagens. Como a Igreja certa vez contou uma estória sobre a escassez da santidade ou da salvação, a Mídia, por sua vez, constrói uma falsa história de escassez de valores ou "significado". Como a Igreja certa vez tentou impor o monopólio do espírito, a Mídia quer refazer a linguagem como mente pura, separada do corpo.

A mídia nega significado à corporalidade, à vida cotidiana, da mesma forma como a Igreja uma vez definiu o corpo como demoníaco e a vida cotidiana como pecado. A mídia se autodefine, ou ao seu discurso, como o universo real. Nós - meros consumidores - vivemos em um mundo de ilusão, com televisores funcionando como olhos através das quais nós observamos o mundo da vida, os "ricos & famosos", o real. Da mesma forma a religião definiu o mundo como ilusão e só o céu como real - real, mas tão distante. Se a insurreição soou certa vez para a Igreja como heresia, ela deve agora, por conseguinte, falar à mídia. Certa vez colonos revoltados queimaram igrejas. Mas o que são exatamente as igrejas da Mídia?

É fácil sentir nostalgia por um inimigo certa vez tão esplêndido como a Igreja Católica Romana. Eu tenho até mesmo tentado me convencer que o pretencioso e fracassado combate ao sexo ainda merece que conspiremos contra ele. Infiltre-se na igreja; encha o ofertário como belos flyers pornô intitulados: "Esta é a face de Deus"; esconda objetos vudu/dada embaixo dos bancos e atrás do altar; envie manifestos ocultos ao Bispo e ao clérigo; publique ameaças satânicas na imprensa idiota; deixe evidências incriminando os Illuminati. Um alvo ainda mais satisfatório pode ser os Mormons, que estão completamente entorpecidos pelo commtech hipermediado e ainda intensamente sensíveis à "magia negra".

O Televangelismo oferece uma mistura tentadora de mídia e religião ruim. Mas quando ele se torna o poder real, as igrejas se sentem completamente vazias. Deus as abandonou. Deus tem seu próprio talk-show agora, seus próprias corporações patrocinadoras, sua própria rede. O real alvo é a Mídia.

O "ataque mágico" entretanto se mantém como uma tática promissora contra a nova igreja e a "nova inquisição" - precisamente porque a Mídia, como a Igreja, faz o seu trabalho através da "mágica", a manipulação de imagens. Nosso maior problema em atacar a Mídia na realidade será o de inventar uma tática que não possa ser recuperada pela Babilônia e transformada em benefício de seu próprio poder. Uma apressada reportagem "ao-vivo" de que a CBS foi atacada por feiticeiros tornar-se-ia simplesmente parte do espetáculo da dissidência, o drama do discurso da simulação. A melhor defesa tática contra a cooptação será a sutil complexidade e a profundidade estética de nosso simbolismo, o qual deverá conter dimensões fractais intraduzíveis para a imagem/linguagem chata do televisor. Mesmo se "eles" tentarem se apropriar de nosso conjunto de imagens, ele vai carregar um fragmento inesperado de texto "viral" que irá infectar todas as tentativas de recuperação com a nauseante mazela da incerteza - um "terror poético".

Uma idéia simples seria a de explodir uma torre de transmissão de TV, e, então, creditar a ação em nome da Sociedade Americana de Poesia (quem deveria estar explodindo torres de TV); mas um ato puramente destrutivo como esse não tem o aspecto criativo da tática realmente imediatista. Cada ato puramente destrutivo deveria idealmente ser também um ato de criação. Suponhamos que nós pudéssemos impedir a transmissão da TV em uma vizinhança e, ao mesmo tempo, sugerir um festival miraculoso, liberando e transformando o centro comercial local em uma TAZ de uma noite de duração - nossa ação combinaria, por conseguinte, destruição e criação em uma "ação direta" verdadeiramente Imediatista de beleza e terror - Bakuniana, situacionista, real dada pelo menos. A mídia poderia tentar distorcê-la e se apropriar de seu poder, mas mesmo que o fizesse, ela nunca poderia apagar a experiência de uma vizinhança e de suas pessoas libertas - e as chances são de que, depois de tudo, a mídia permaneça em silêncio, uma vez que o evento todo parecerá muito complexo para ela o digerir e cagar como "notícia".

Tal ação imensamente complexa poderia estar além das capacidades de todos, exceto do mais rico e bem-desenvolvido Tong Imediatista. Mas o princípio pode ser aplicado em níveis mais baixos de complexidade. Por exemplo, imagine que um grupo de estudantes deseja protestar contra o efeito imbecilizante da mídia da educação, interrompendo ou fechando a escola por algum tempo - de realização fácil, como muitos ilustres sabotadores de colégio têm descoberto. Se levado a cabo como uma ação puramente negativa, o gesto pode ser interpretado como "delinqüência" pelas autoridades e, logo, a sua energia pode ser recuperada em benefício do Controle. Os sabotadores deveriam fazer um "ponto de simultaneidade", provendo informações valiosas, beleza e um senso de aventura. Pelo menos, panfletos anônimos sobre o anarquismo, "ensino em casa", crítica da mídia ou algo desse tipo podem ser "deixado na cena" ou distribuído para outros estudantes, grupo de professores e até mesmo para a imprensa. Na melhor das hipóteses, uma alternativa para a escola deveria ser sugerida, através da convivência, do festival, do aprendizado livre, da criatividade compartilhada.

Voltando ao projeto do "ataque mágico" à mídia, ou mídia-hex: ele também deveria combinar em um gesto tanto elementos destrutivos como criativos da efetiva obra de arte Imediatista ou do trabalho do terrorismo poético. Dessa forma, ele irá (nós esperamos) demonstrar-se muito complexo para o usual processo de recuperação. Seria, por exemplo, fútil bombardiar o alvo midiático com imagens de horror, chacina, assassinatos em série, abuso sexual "alien", sadomasoquismo e coisas do tipo, uma vez que a Mídia é o próprio distribuidor desse conjunto de imagens. O demi-satanismo de Guignol cabe bem neste espectro do "horror-como-controle", onde a maioria das transmissões ocorre. Você não pode competir com as "Notícias" por imagens desagradáveis, repulsivas, de pânico atávico ou de poças de sangue. A mídia (se é que podemos personificá-la por um instante) pode inicialmente se surpreender que alguém se importe em espelhar essa porcaria de volta - mas isso não teria nenhum efeito oculto. (IV)

Vamos imaginar (outro "experimento no pensamento!") que um grupo Imediatista de algum tamanho e seriedade tenha, de alguma forma desconhecida, descolado os endereços (incluindo fax, telefone, e-mail, etc.) de um grupo criativo e executivo de um programa de TV que nós consideramos o ápice da alienação e do veneno psíquico (vamos dizer, "NYPD Blue"). Em The Malay Black Djinn Curse eu sugiro o envio de pacotes com objetos dada/vudu para tais pessoas, juntamente com avisos de que o seu local de trabalho foi amaldiçoado. Naquele tempo, eu relutava em recomendar feitiços contra indivíduos. No entanto, vou recomendar agora algo ainda pior.

Além disso, para esses magnatas da mídia, eu bem que prefiro algo como um conjunto de imagens muçulmanas/heréticas do réptil rastejante da selva, que eu sintetizei como a operação "Djinn Negro" - uma vez que a mídia demonstra medo pelo terror muçulmano assim como intolerância contra muçulmanos. Não obstante eu deveria agora fazer todo o cenário e o conjunto de imagens muito mais complexos. Aos executivos da TV e seus escritores, deveriam ser enviados objetos perturbadores e extraordinários como "caixas" surrealistas, contendo imagens belas mas "ilegais" de prazer sexual (V) e simbolismo espiritual intrincado. Imagens que evocam a autonomia e o prazer na auto-realização, tudo muito sutil, sinuoso e misterioso. Estes objetos devem ser feitos com alta inspiração e fervor artístico real, e cada um deve ser feito para uma pessoa apenas - a vítima da macumba.

Os destinatários podem ficar abalados com estes "presentes" anônimos, mas provavelmente não os irão destruir nem discutir de uma vez. Nenhum prejuízo para o nosso esquema se eles o fizerem. Mas esses objetos podem muito bem parecer legais, muito "caros" para serem destruídos - ou muito "sujos" para se mostrar a alguém. No próximo dia, cada um dos destinatários-vítima irá receber uma carta explicando que o recebimento dos objetos efetuou a entrega de uma maldição. A macumba irá despertar seus desejos verdadeiros, simbolizados pelos objetos mágicos. Eles irão também perceber que eles estão agindo como inimigos da raça humana ao transformarem em mercadoria o desejo e trabalhar como agentes no controle das almas. Os objetos de arte mágicos vão se entrelaçar com seus sonhos e desejos, tornando seus empregos agora parecerem não apenas chatos e envenenados como também moralmente destrutivos. Seus desejos, despertos agora de forma mágica, irão arruiná-los para trabalhar na mídia - a menos que eles se voltem para a subversão e a sabotagem. Na melhor das hipóteses eles podem desistir. Isto pode salvar sua sanidade sob o preço de suas "carreiras" sem significado. Se eles continuarem na mídia, eles irão se perder em desejos não satisfeitos, vergonha e culpa.

Ou então se tornarão rebeldes e aprenderão a lutar contra o Olho da Babilônia a partir da barriga do ídolo. Enquanto isso, seu "show" vai sendo tomado por ataques de magia negra de um grupo de feiticeiros xiitas terroristas, de um esquadrão de choque vudu libiano, ou algo desse tipo. É claro, seria legal ter um agente lá dentro para criar “evidências" e espionar informações, mas alguma variação neste esquema pode ser realizado sem infiltração ativa na instituição. O ataque inicial pode ser talvez seguido de uma mala direta com propaganda antimídia ou até artigos Imediatistas. Se possível, é claro, algum azar poderia ser produzido para as vítimas ou para a sua instituição. Vocês sabem: trapaças. Mas, novamente, isto não é necessário, e pode até mesmo tomar o caminho de um puro experimento nosso em mind-fuck e manipulação de imagens. Deixe os bastardos produzirem seu próprio azar desde sua tristeza interior, por serem estes grandiosos cuzões demoníacos, a partir de sua superstição atávica (sem a qual eles não seriam estes grandes magos da mídia), de seu medo da alteridade, de sua sexualidade reprimida. Você pode ter certeza de que eles irão lembrar da "maldição" toda vez que algo ruim acontecer para eles.

O princípio geral pode ser aplicado para outras mídias diferentes da TV. Uma companhia de informática, por exemplo, pode ser amaldiçoada através de seus computadores por um hacker de talento - este deve evitar cenários de ficção científica, tais como o ciberespaço assombrado de William Gibson - muito barroco. Companhias de publicidade funcionam sob mágica pura, film-makers, firmas PR, galerias de arte, advogados e até políticos. (VI)
Qualquer opressor que trabalha através da imagem é suscetível ao poder da imagem.

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Deve ser enfatizado que nós não descrevemos aqui a Revolução, ou uma ação política revolucionária, ou mesmo a Sublevação. Este é meramente um novo tipo de proposição de agitação neo-hermética, uma proposta para um novo tipo de "arte política", um projeto para uma Tong de artistas rebeldes, um experimento no jogo do Imediatismo. Outros indivíduos irão lutar contra a opressão em seus próprios campos de experiência, trabalho, discurso, vida. Como artistas, nós escolhemos lutar com a "arte", com o mundo da mídia, contra a alienação que nos oprime de forma mais direta. Nós escolhemos batalhar onde nós vivemos, ao invés de teorizar sobre a opressão em algum outro lugar. Eu tenho procurado sugerir uma estratégia e imaginar certas táticas que levem adiante a luta. Nenhum outro chamado é feito, e nenhum detalhe adicional deve ser revelado. O resto é para a Tong.

Eu admitirei que o meu gosto se inclina para uma abordagem ainda mais violenta da Mídia do que a proposta neste texto. Pessoas falam sobre tomar o controle de estações de TV, mas nenhuma delas têm conseguido. Pode fazer mais sentido atirar televisores contra as vitrines das lojas de eletro-domésticos, ridículo assim como parece, do que sonhar em dominar os estúdios de TV. Eu esbocei algumas formas sugerindo atentados contra os fascistas da notícia, ou mesmo matando o cachorro de Geraldo, por muitas razões que ainda parecem suficientes para mim. Eu tenho lembrado das considerações de Nietzsche acerca da futilidade e da inferioridade da vingança como doutrina política. Uma mera reação nunca é uma resposta suficiente - tampouco um caminho nobre. Além disso, ela não funcionaria: seria vista como um "ataque à liberdade de expressão".

O projeto aqui proposto inclui, em suas estruturas, a possibilidade de mudar alguma coisa de fato - mesmo que apenas algumas "mentes". Em outras palavras, ele possui um aspecto construtivo integralmente limitado por um aspecto destrutivo, de forma que os dois não podem ser separados. Nossos objetos dada/vudu são tanto um ataque como uma sedução, e ambos serão exaustivamente explicados nas cartas ou flyers que os acompanham. No final das contas, existe a chance de convertermos alguém. Nós podemos, é claro, facilmente falhar no projeto também. Todos os nossos esforços podem acabar no lixo, esquecidos pelas mentes tão bem armadas até para sentir os momentos de nervosismo. Isto é, no final das contas, um mero experimento do pensamento, ou um experimento no pensamento. Você pode demoniná-lo, se preferir, como uma mera forma de crítica estética dirigida aos perpetradores, ao invés de aos consumidores, de arte ruim.
O tempo da violência real não é agora, só porque a produção da violência se mantém como monopólio das Instituições. Não há razão para colocar a cabeça à prêmio, ostentando uma arma, se se está diante de um raio da morte de um satélite de guerra nas estrelas. (VII)

Nossa tarefa é a de alargar as fissuras do pseudo monolito do discurso social, gradativamente descobrir pequenas partes de espetáculo vazio, rotular formas sutis de controle mental, mapeando rotas de fuga, estilhaçar as cristalizações da imagem sufocadora, bater em panelas e frigideiras para acordar os cidadãos do transe da mídia, usar a "mídia íntima" (VIII) para orquestrar nossos ataques à Grande Mídia e às suas Grandes Mentiras; aprender novamente a respirarmos juntos, a vivermos em nossos corpos, a resistirmos à imagem-heroína da "informação".

De fato, o que nós chamamos de "ação direta" pode ser aqui melhor conhecida como ação indireta, viral, oculta, simbólica e sutil, ao invés de atual, que fere, militante e aberta. Se nós e nossos aliados naturais gostamos até dos pequenos sucessos, entretanto, a superestrutura pode eventualmente perder muito de sua coerência e também da garantia de que seu poder vai começar a se perder.

O dia pode chegar (quem teria imaginado que, em uma manhã de 1989, o Comunismo iria evaporar?), o dia quando o Capitalismo muito-tardio começar a derreter - afinal isto tudo é apenas marxismo e fascismo que perdura porque é ainda mais estúpido - um dia a própria fábrica do consenso pode começar a se desfazer, junto com a economia e com o meio-ambiente. Um dia o colosso pode tremer, balançar como uma velha estátua de Stalin em um quarteirão de uma cidade provinciana. E, talvez, nesse dia a estação de TV explodirá e permanecerá explodida. Até lá: um, dez, mil ataques ocultos às instituições.

NOTAS:
I. Eu não estou usando o termo hipermídia aqui no sentido atribuído a ele por nossos camaradas da Xexoxial Endarchy, os quais chamam de hipermídia a apropriação de simplesmente toda a mídia criativa para um único efeito (por exemplo: o próximo estágio além da "mídia misturada")... Eu estou usando "hipermediação" para significar a representação exacerbada a ponto de uma alienação, tal como na imagem da comoditização.

II. O Mormonismo foi fundado por patifes ocultistas Freemason, e os líderes Mormon permanecem extremamente suscetíveis às insinuações de um passado enterrado que pode retornar para assombrá-los. A Igreja Católica Romana poderia, por milênios, dar de ombros, com sofisticação, ao "ataque mágico" - mas os Mormons pegariam em armas.

III. É importante não ser pego pois isso neutraliza qualquer poder que possamos ter obtido ou procurado expressar, e até mesmo coloca o nosso próprio poder contra nós. Uma boa ação Imediatista deveria ser relativamente impecável. Ser expulso da escola pode estragar o efeito. O Imediatismo quer ser uma arte marcial, não a estrada para o martírio.

IV. O problema com a maior parte da arte "transgressora" é que ela não transgride nenhum dos valores consensuais - ela nada mais faz do que exagerá-los ou, na melhor das hipóteses, exacerbá-los. A obsessão estética com a "Morte" forja uma mercadoria perfeita (imagem-sem-substância), uma vez que o significado da entrega da imagem colocaria, de fato, um fim ao consumidor. Comprar a morte é comprar o fracasso ou o fascismo - um precipício sobre o qual Bataille tremeu com a falta doentia de equilíbrio. Eu digo isso apesar da admiração por Bataille.

V. Isto irá prevenir as imagens de até mesmo aparecerem na TV ou em fotos de notícia. Isto também irá, por coincidência, fazer a declaração sobre a relação entre "beleza" e "obscenidade" e entre "arte" e "censura", etc., etc.

VI. Geralmente não vale a pena atacarmos como "políticos", porque eles são, afinal de contas, meros "tigres de papel" - mas talvez valha a pena atacarmos como tigres de papel.

VII. Todo o respeito aos ativistas que destruíram um grande satélite, na Califórnia, com machados. Infelizmente, eles foram pegos e sua punição foi ter de pagar o custo da destruição com seus salários. Nada bom.

VIII. A mídia íntima, por definição, não alcança a massa não-consciente como a TV, os filmes e os jornais. Rádio FM, vídeo por cabo de acesso público, imprensa "nanica", CDs e fitas cassete, software e outras tecnologias de comunicação podem ser usadas como mídia "íntima". Aqui, a idéia da Xexoxial Endarchy de "hipermídia" como uma ferramenta para a insurreição encontra seu verdadeiro papel. Existem duas facções em luta dentro da teoria não-autoritária no momento: os primitivistas anti-tech (Fifth Estate, Anarchy: A journal of Desire Armed, John Zerzan) e os pro-tech futurologistas (incluindo tanto a esquerda anarco-sindicalista, como os anarco-libertários de direita).
Eu considero todos os argumentos amplamente informativos e inspiradores. Em TAZ e em algum outro lugar, eu tentei reconciliar ambas posições em meu próprio pensamento. Eu sugeriria agora que a questão proposta por esses argumentos não pode ser respondida a não ser no processo de transformação a uma praxis (ou politique) do desejo. Vamos imaginar que a "Revolução" instaurou-se. Nós somos livres para escolher nosso nível de tecnologia em um espectro que compreende desde a pré-idade do gelo primitiva até a ficção científica pós-industrial. Irão os neo-paleolíticos forçar os futuristas a desistirem de sua tecnologia? Irão os cadetes do espaço forçar os Zerzanites à comprarem roupas VR? Devotamente, espera-se que não. A questão, ao contrário, será: o quanto nós desejamos a vida de caça e coleta? Ou a vida ciberevolucionária?
Nós desejamos computadores suficientes para forjar nós mesmos chips de silício? Porque, depois da revolução, ninguém vai aceitar trabalho alienado. A respeito disso, todas as tendências não-autoritárias concordam. Você deseja uma floresta repleta de jogos? Você é responsável por sua fecundidade e sua selvageria. Você deseja uma espaço-nave? Você é responsável por sua fabricação, desde a busca de minérios até a solda do cone de sua extremidade. De todas as maneiras, forma-se a comuna ou o trabalho em rede. De todas as formas, existe a demanda de que o meu nível de tecnologia não interfira no seu. Afora estas regras básicas para evitar uma guerra civil, a sociedade não-autoritária não depende em nada, a não ser no desejo de dar forma a sua techne. Como Fourier colocaria, o nível de complexidade econômica da sociedade utópica estará em harmonia com a totalidade das paixões. Eu não posso prever exatamente o que pode emergir. Tudo que eu posso imaginar é que eu sou capaz de desejar ao ponto de estar pronto para trabalhar em sua realização.
Pessoalmente (por uma questão de gosto), eu imagino algo muito parecido com bolo'bolo - infinita variedade em um contexto revolucionário básico de liberdade positiva. Por definição, não poderá existir lá algo como uma NASA-bolo ou um Wall-Street-bolo, porque a NASA e Wall-Street dependem da alienação para existirem. Eu esperaria algo de baixa tecnologia ou de tecnologia apropriada (imaginada pelos teoristas dos anos 60, como Illich) tornar-se o padrão Utópico, com asas extremas ocupando uma selvageria restaurada de um lado, e a Lua de outro lado...
De qualquer forma, é tudo ficção científica. Em meus escritos eu tento imaginar táticas que possam ser usadas agora, e por qualquer tendência não-autoritária. A "Tong" e o ataque a mídia devem apelar tanto para os primitivistas como para os techies. E eu discuto o uso da magia e dos computadores porque ambos existem no mundo em que habito e ambos serão utilizados na luta pela liberação. Não apenas o futuro, mas mesmo o presente mantém muitas possibilidades, muitos recursos, um superabundante-redundante excesso de potenciais, para serem limitados pela ideologia. Uma teoria da tecnologia é muito restritiva. O imediatismo oferece em troca uma estética da tecnologia, e prefere a práxis a teoria.

* NOTA SOBRE A ARQUITETURA DA TAZ

Obviamente a TAZ costuma deixar não apenas buracos para trás. A construção não é sua prioridade mais alta. E, ainda, todo o espaço vivido é arquitetura - espaço construído, espaço feito -, e a TAZ, por definição, tem sua presença no espaço e no tempo real. O acampamento nômade pode talvez servir como um protótipo primordial. Barracas, Traillers, Motorhomes, casas-barco. O velho circo ou carnaval itinerante pode oferecer um modelo para a arquitetura da TAZ. No meio urbano, organizar um squat se torna a opção mais comum de espaço para os nossos propósitos, mas na América, não importa o que aconteça, a lei da propriedade faz de um squat um espaço quase pobre. A TAZ deseja um espaço rico, não tão rico em articulação (como no espaço do controle, a construção oficial do capital, da religião, do estado) mas rico em expressão.
Os espaços de atuação temporários propostos por situacionistas e urbanistas radicais nos anos 60 tinham certo potencial, mas finalmente se demonstraram muito caros ou muito planejados. A arquitetura ur-TAZ é aquela da comuna de Paris. A microvizinhança é fechada por barricadas. As casas idênticas dos pobres são então conectadas por passarelas através de todas elas, conectando muros ao chão. Estas passarelas nos lembram as arcadas de Fourier, pelas quais os Planasterians circulariam através de seu palácio comum, do espaço privado ao público e vice-versa. A Comuna bloqueando a cidade tornou-se uma TAZ fortificada com espaço militar público no nível do chão (e telhados) e o espaço privado em histórias superiores, com as ruas fechadas como espaço do festival. Este plano influencia a arquitetura da "P.M.'s bolo'bolo", onde o bloco da comuna torna-se uma comuna utópica urbana mais permanente. Assim como a TAZ, ela é afetada por um tipo de fechamento, mas projeta-se paradoxalmente através de aberturas. Ela escapa do asfixiante enclausuramento do Capital, e da trágica fealdade do espaço industrial. Sua arquitetura é suave, não estriada - por essa razão a tenda, não a prisão, a passarela e não o portal, a barricada, não os boulevards de Haussman.

Tradução: fido