Monday, June 02, 2008

Sobre a Anarquia

O que é um Anarquista?

O profeta Maomé disse que qualquer um que te deseje "Paz!" pode ser considerado um Muçulmano. Igualmente, poderíamos considerar todos que se denominem "anarquistas" como anarquistas (a não ser que sejam espiões da polícia); - isso é, simplesmente aqueles que desejam a abolição do Estado.

Para os Sufi, a questão, "O que é um Muçulmano?" não desperta qualquer interesse. Ao invés disso eles se perguntam, "Quem é esse Muçulmano? Um dogmático ignorante? Um acintoso¹? Um hipócrita? Ou será ele alguém que, pelo contrário, se empenha por experienciar o conhecimento e o amor, está disposto a buscar ser pleno e harmonioso?"

"O que é um anarquista?" não é a verdadeira pergunta. A pergunta correta é: "Quem é esse anarquista?" um dogmático ignorante, acintoso¹, hipócrita? Alguém que brada ter esmagado todos os ídolos, e que ao mesmo tempo ergue novos altares mentais para cultuar fantasmas e abstrações? Será ele alguém que tenta viver no espírito da Anarquia, do não-ser-governado/não-governar, ou será alguém que meramente usa a retórica da rebelião como uma desculpa para sua inconseqüência, ressentimento e auto-pauperização?"

As picuinhas teológicas insignificantes aumentaram indesculpável e tediosamente entre os sectos anarquistas. Ao invés de exigir definições (ideologias), pergunte "O que você sabe?" - "Quais são seus verdadeiros desejos?" - "O que você vai fazer agora?" - e como Diaghilev² disse para o jovem Cocteau³ - "Me impressione!"



O que é Governo?

O Governo talvez tenha surgido como uma forma de relação estruturada entre os humanos no momento em que o poder passou a ser desigualmente distribuído, em que a vida criativa de alguns foi reduzida pelo engrandecimento de outros. Desta forma o governo opera em todas as relações em que os membros não são realmente considerados como parceiros em uma estrutura de mutualidade e simetria. O governo pode ser observado em unidades sociais tão pequenas como a família nuclear ou tão "informais" como um encontro casual entre alguns vizinhos na rua - por outro lado onde quer que o governo não possa alcançar, com certeza surgirão organizações muito maiores, estas tal qual uma mobilização insurgente ou multidões de entusiastas do compartilhamento, encontros Quakers ou Sovietes Livres, Banquetes Yomango ou sociedades benevolentes.

Um certo tipo de relações humanas que surgiu como parcerias legítimas, provavelmente através do processo de institucionalização, declinaram em direção a formas de Governo - nesse sentido uma relação amorosa tenha talvez se transformado na instituição casamento, uma micro-tirania de avareza amorosa; ou algo como uma comunidade intencional fundada livremente para tornar possível certas formas de viver, desejadas por todos os seus membros, acabou dominando e subjugando suas crianças com regras morais insignificantes, cascas vazias daquilo que uma vez foram ideais gloriosos.

A meta da Anarquia é nunca existir por mais que um curto período. Em todo lugar e todas as relações humanas sempre podem ser reduzidas a instituições que por sua vez podem se degenerar em governos. Talvez alguém possa argumentar que isso é "natural?" ...Mas e daí?! O oposto também é "natural". E se não for, então continuarei escolhendo o não-natural, o impossível.

Nós bem sabemos que relações livres (não-governadas) são perfeitamente possíveis, pois as vivenciamos de forma relativamente freqüente - e mais ainda quando nos esforçamos por cultivá-las. O anarquista opta ter por meta (também a arte, a vivacidade) a maximização das condições sociais para a emergência de tais relações. Porque é isso que desejamos e é isso o que fazemos.



E quanto ao crime?

As considerações mais elevadas podem implicar em uma forma de "ética", uma definição mutável e funcional de justiça em cada contexto e em cada situação existente. Anarquistas provavelmente poderiam considerar apenas como "criminoso" aqueles que deliberadamente agissem contra a realização de relações libertárias. Em uma sociedade hipotética onde o sistema carcerário tenha sido abolido, apenas aqueles que não tenham sido dissuadidos deste tipo de atitude poderiam ser alvo da "justiça do povo", ou mesmo da vingança.

Por hora, no entanto, seria suficiente perceber que nossa determinação de criar agora mesmo estas relações, mesmo que de um modo imperfeito e não-utópico, vai inevitavelmente nos colocar numa posição de "criminalidade" batendo de frente com o Estado, o sistema legal, e provavelmente também com as "leis não-escritas" do preconceito popular. Martírio Revolucionário está fora de moda há muito tempo, o objetivo atual é criar tanta liberdade quanto for possível sem ser pego.



Como uma sociedade anarquista funciona?

Uma sociedade anarquista funciona, sempre que duas ou mais pessoas mutuamente direcionam seus esforços na organização de uma parceria legítima, com o objetivo de alcançar desejos compartilhados (ou complementares). Nenhum governo é preciso para estruturar um encontro oculto, um jantar festivo, um mercado negro, uma tong (ou sociedade secreta de ajuda mútua), uma rede de correspondências ou uma BBS, uma relação amorosa, um movimento social espontâneo (como eco-sabotagem ou ativismo contra a AIDS), um coletivo artístico, uma comuna, um encontro pagão, uma vizinhança associada para a proteção mútua, um clube de entusiastas, uma praia de nudismo, uma Zona Autônoma Temporária. A chave, como Fourier teria dito é a paixão - ou, para usar uma palavra que possa soar mais moderna, o desejo.



O que podemos fazer para alcançá-la?

Em outras palavras, como nós maximizamos o potencial para que tais relações espontâneas possam surgir e superar o peso morto de uma sociedade sufocada por todas as variedades de governança? Como podemos dar a paixão ao reino livre, recriando o mundo de cada dia na liberdade verossímil de "espirito livre" e o grupo de desejos compartilhados? Esta é a questão de 64 dólares - que realmente não é nada demais, já que a resposta apenas pode ser encontrada na ficção científica.

Muito bem, meu senso de estratégia está inclinado a rejeitar todas as táticas remanescentes da velha "Nova Esquerda" como manifestações, performances midiáticas, protestos, petições, resistência pacífica e terrorismo aventureiro. Todo este complexo estratégico foi a muito tempo assimilado e produtificado pelo Espetáculo (se você me permite o uso deste jargão situacionista), e certamente não possui qualquer valor, nem mesmo enquanto tática de misconstrução.

Outras duas áreas estratégicas bem diferentes parecem muito mais interessantes e promissoras. Um é o complexo evocado por John Zerzan em seu Elementos de Rejeição - que é a rejeição de toda expansão de mecanismos de controle em grande escala supostamente apolíticos inerentes a instituições como o trabalho, educação, consumismo, política eleitoral, "valores familiares", etc. Os anarquistas poderiam querer voltar suas atenções no sentido de intensificar e dar um outro rumo a esses "elementos". Tais ações provavelmente cairiam na tradicional categoria de "agitprop¹", mas poderiam descambar para a tendência "esquerdista" de institucionalizar ou "fetichizar" tais programas nos termos definidos por uma elite revolucionária auto-instituída ou vanguarda.

A ação na área de "Elementos de Refutação" é algo negativo, até mesmo "niilista", enquanto a segunda área se preocupa com a emergência de organizações espontâneas capazes de prover alternativas reais às instituições de Controle. Assim as ações insurgentes de "refutação" são complementadas e aprimoradas pela proliferação e concatenação de relações "simétricas de parceria". Em certo sentido esta é uma versão melhorada da velha estratégia oscilante de agitação em prol de uma Greve Geral enquanto simultaneamente se constrói uma nova sociedade dentro da casca da velha organização. A diferença, proposta, é que a greve deve ser ampliada para além do "problema do trabalho" incluindo todo o escopo da "vida cotidiana" (num sentido Debordiano)¹¹.

Busquei apresentar propostas bem mais especificas no ensaio chamado de Zona Autônoma Temporária¹²; então aqui me limitarei a alegação de que o objetivo de tais ações não podem propriamente ser designado pela palavra "Revolução" - como uma Greve Geral, por exemplo, jamais foi uma tática "Revolucionária" e sim, mais particularmente, uma forma de "violência social" (como explicado por Sorel¹³). "A Revolução traiu a si mesma como só mais uma mercadoria", cataclismo sangrento, mais uma giro na manivela do controle - isto não é o que desejamos, mas sim uma oportunidade para a anarquia brilhar.



É a Anarquia o fim da História?

Se a vinda da anarquia nunca se "efetivar" a resposta é Não - exceto no caso especial da "História" auto-definida e privilegiada como uma auto-valorização de instituições e "governos". Mas história nesse sentido provavelmente já está morta, já "desapareceu" dentro do Espetáculo, ou da obscenidade da Simulação. A tal ponto que conforme a anarquia envolve um tipo de paleolitismo psíquico, está saudosamente situada em status pós-histórico que poderia se espelhar no pré-histórico. Se os teóricos franceses estão corretos, já começamos a entrar em tal status. A história como estória vai continuar, já que os humanos podem também ser definidos como animais que fazem estórias. mas História como uma estória oficial em pró do Controle perdeu seu monopólio no discurso. Presumo que isto poderá nos trazer alguma vantagem.


Como a Anarquia se relaciona a Tecnologia?

Se anarquia é um tipo de paleolitismo, isso não significa que temos que nos ejetar de volta a Era da Pedra lascada. Estamos interessados no retorno do Paleolítico, e não em um retorno a ele. Nesse ponto acredito que discordo de ambos Zerzan e o Fifth Estate¹, e também dos tecno-futuro-libertários da Califórnia. Ou, de certa forma, concordo com todos eles, eu sou ambos, um ludita e um cyberpunk, portanto inaceitável para ambas as partes.

Minha crença (não conhecimento) é que a sociedade que começa a se aproximar da anarquia geral vai ter que lhe dar com tecnologia no fundamento da paixão, isto é, desejo e prazer. A tecnologia da alienação falharia em sobreviver em tais condições, enquanto a tecnologia do encantamento iria provavelmente persistir. A selvageria no entanto, seria também necessariamente presente e ativa em uma parte cada vez maior do mundo, uma vez que selvageria é prazer. Uma sociedade baseada no prazer nunca nos permitiria tecnicizar ou interferir em sua diversão naturalizada.

Se é verdade que toda técnica é uma forma de meditação, então tudo é cultura. Não aceitamos objetificar a meditação por si só (depois de tudo, nossos sentidos são uma mediação entre o "mundo" e o "cérebro"), mas principalmente com relação a distorção trágica da meditação em alienação. Se a linguagem por si só é uma forma de meditação então nós podemos "purificar a linguagem da tribo"; não é a poesia que nós odiamos, mas sim linguagem enquanto Controle¹.


Por que a Anarquia nunca funcionou antes?

O que você quer dizer com "Por que a Anarquia nunca funcionou antes?!" Ela funcionou centenas, de milhões de vezes. Funcionou entre 90% da existência humana, na Pré-história. E funciona entre as tribos de caçadores e coletores até os dias de hoje. Funciona em todos os grupos de "relações livres" listados acima, dos encontros ocultos as tongs. Funciona toda vez que você convida alguns amigos para um piquenique. "Funcionou" mesmo nas "insurreições que não tiveram êxito" como nos sovietes de Munich e de Shanghai, na Baixa California em 1911, Fiume 1919, Krondstadt 1921, Paris 1968. Funcionou nas comunas, nos enclaves Maroon e nas utopias piratas. Funcionou na antiga Rhode Island na Pennsylvania, em Paris 1870, na Ucrânia, na Catalunha e em Aragão.

O chamado futuro da Anarquia é um julgamento feito precisamente pelo tipo de História que acreditamos estar moribunda. É verdade que poucos desses experimentos (exceto e o pré-histórico e o tribal) duram "muito tempo" - mas isso não diz nada sobre o valor e a natureza da experiência, de indivíduos e grupos, que vivenciaram tais períodos de liberdade. Talvez você possa recordar de algum caso amoroso, um em que mesmo agora lhe traga certo sentido a toda a sua vida, antes e depois - uma "experiência de pico". A História é cega a esta porção do espectro, o mundo da "vida cotidiana" pode ser eventualmente espaço de uma "irrupção do Maravilhoso". Sempre que isso acontece é um triunfo para anarquia. Imagine então (e isso é o tipo de história que a gente gosta) a aventura das principais Zonas Autônomas Temporárias durando seis semanas ou mesmo dois anos, o comunal senso de iluminação, camaradagem, satisfação - o indiviso sentimento de poder, de destino, de criatividade. Ninguém que já tenha vivenciado qualquer coisa como isso pode admitir por apenas um segundo que o perigo das falhas e dos riscos possam pesar sobre a glória absoluta destes breves momentos de levante. Tão logo a sacralidade deste caso de amor seja posta em dúvida, mesmo que termine em dor e sofrimento!

Ao superar o mito da derrota, sentiremos definitivamente a certeza interior do sucesso, como a fria brisa que sopra a chuva no deserto. Saber, desejar, agir no sentido de que não podemos desejar o que ainda não conhecemos. Mas há muito conhecemos o sucesso da anarquia por um longo tempo agora - em fragmentos, talvez, em flashes - mas real, real como as monções, tão real como a paixão. Se não fosse assim, como poderíamos ousar desejá-la, muito menos agir para concretizar sua vitória?


Originalmente intitulado: "The Willimantic/Rensselaer Questions" Em : Anarquia e o Fim da História (Anarchy and the End of History) pp. 87-92

Tradução e Revisão Coletivo Protopia S/A


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NOTA

1. Aquele que acinta, que cria situações desagradáveis desnecessárias, que se apega a detalhes superficiais, que age propositalmente para descontentar ou contrariar alguém. (N.T.)

2. Sergei Diaguilev (Сергей Павлович Дягилев) (nascido em 1872 – falecido em 1929), também conhecido como Serge, foi o fundador da companhia Ballets Russes a partir da qual muitos famosos dançarinos e coreógrafos surgiram. (N.T.)

3. Jean Cocteau (nascido em 1889 — falecido em 1963) foi um cineasta, ator, encenador e autor de teatro francês. foi um dos mais talentosos artistas do século XX. Além de ser diretor de cinema, foi poeta, escritor, pintor, dramaturgo, cenógrafo e ator e escultor. (N.T.)

4. No original em francês, Jouissance. (N.T.)

5. Sigla para bulletin board system. Trata-se de um sistema informático surgido na década de 1980, um software, que permite a ligação (conexão) via telefone formando uma pequena rede de computadores, permitindo que um certo número de usuários possam interagir através dela, tal qual hoje se faz com a internet, se bem que com uma abrangência limitada. (N.T.)

6. No original em inglês, Ghandian resistance. (N.T.)

7. No original em inglês, Detournement. Conceito situacionista que trata da possibilidade artística e política de tomar algum objeto criado pelo capitalismo, enquanto sistema político econômico hegemônico e distorcer seu significado e uso original para produzir um efeito crítico. (N.T.)

8. John Zerzan (nascido em 1943) é um dos principais teóricos do anarco-primitivismo da atualidade. Licenciado em Ciências Políticas pela Stanford University e em História pela San Francisco State University. Preso em 1966, nos EUA, pela sua participação nos movimentos de desobediência civil e contra a guerra do Vietnam, conhecidos pelos tumultos de Berckeley. Abandonou a carreira universitária na University of Southern California. Hoje, dedica-se à educação de crianças e à jardinagem. Promove, ainda, conferências sobre o Primitivismo e Paleo-Anarquismo em todo o mundo. É o autor de Elements of Refusal (1988) e de Future Primitive (1994), Questioning Technology (1988), The Mass Psychology of Misery, Tonality and the Totality, The Catastrophe of Postmodernism e The Nihilist's Dictionary. (N.T.)

9. Elements of Refusal, editora, Left Bank Books, Seattle, 1988. (N.A.)

10. Agitprop (em russo: агитпроп) é a contração de "agitação e propaganda". O termo teve origem na Rússia Bolchevista (a futura União Soviética), como uma redução de отдел агитации и пропаганды (otdel agitatsii i propagandy), Departamento de Agitação e Propaganda, que era parte dos comitês centrais e regionais do Partido Comunista da União Soviética. O departamento posteriormente seria renomeado para Departamento Ideológico. (N.T.)

11. Este seria o lugar certo para a questão número 9, "Qual é nossa relação com outras lutas de libertação?", o que nos parece estar sub-sumido a uma questão de táticas/estratégias. A resposta claramente poderia ser: Nós os apoiamos tendo em vista o fato deles serem atualmente movimentos de libertação (eco-sabotagem radical, minorias sexuais, etc); e os criticamos de uma forma construtiva caso desviem em direção a institucionalização (unionismo radical, movimentos pacifistas, etc) Mas também: acompanhamos a olho nú onde a ação está acontecendo. Depois de tudo, não seria a insurreição ela mesma um de nossos "prazeres criminais?" Um eterno novo horizonte onde nós nômades e vagabundos, somos capazes de experimentar novamente seu encanto..... (N.A.)

12. Zona Autônoma Temporária (originalmente publicada pela Autonomedia, N.Y., 1991) é provavelmente, o ensaio mais famoso escrito por Hakim Bey onde ele apresenta parte de sua teoria da ação transformadora através das Zonas Autônomas que, diante da presença do poder e da possibilidade da repressão, assumiriam o caráter provisório como estratégia de propagação de um modo de vida anarquista ontológico sempre buscando uma transformação rizomática a nível global. (N.T.)

13. Georges Eugène Sorel (nascido em 1847 – falecido em 1922) engenheiro formado pela École Polytechnique e teórico do sindicalismo revolucionário, muito popular na França, na Itália e nos Estados Unidos. Mas sua influência começou a decair depois de 1920. É um autor controverso quanto a linha política a qual adere. Suas idéias foram aceitas tanto pelo fascismo italiano quanto pela esquerda revolucionária deste país, influenciando consideravelmente o pensamento anarco-sindicalista (N.T.)

14. Fifth Estate (Quinto Estado) é uma revista publicada em Liberty, Tennessee e em Detroit, Michigan. seu coletivo editorial possui diferentes pontos de vistas nos assuntos abordados pela revista, todos eles no entanto partilham uma perspectiva anti-autoritária, não-dogmática, e voltada a ação transformadora. O título presumivelmente sugere que o periódico é uma alternativa para o quarto estado (tradicionalmente a mídia capitalista). (N.T.)

15. Sobre tecnologia anarquista, veja Ilhas na Rede e Dias verdes em Bruney (Islands In The Web and Green Days In Bruney) de B. Sterling, futuro-próximo SF escrito como "realismo utópico", onde um terceiro mundo pobre, desesperado e super populoso faz uso de tecnologia simples, de uma série de soluções ecológicas e humanas para resolver problemas que já existem. Veja também Energia e Eqüidade (Energy and Equity) de Ivan Ilych. (N.A.)

Religião e Revolução

O dinheiro real e a religião hierárquica parecem ter surgido no mesmo misterioso momento, entre o baixo neolítico e o terceiro milênio antes de Cristo, na Suméria ou Egito. Quem nasceu primeiro, o ovo ou galinha? Seria um a resposta do outro ou um o aspecto do outro?

Não há dúvida de que o dinheiro possui uma profunda implicação religiosa; desde o primeiro momento de sua existência começou a lutar pela condição do espírito – para separar a si mesmo do mundo corporal, para transcender a materialidade, para converter-se em um símbolo realmente eficaz.

Com a invenção da escrita nos idos de 3100 A.C, o dinheiro como o conhecemos emergiu a partir de um complexo sistema de fichas de argila ou contadores que representavam bens materiais, tomando a forma de contas escritas de créditos impressos sobre tábuas de argilas. Praticamente sem exceção, estes cheques parecem referir-se a dívidas com o Estado, com o Templo, e na teoria poderiam ser usados em um amplo sistema de trocas com notas de crédito “acunhadas”pela teocracia.

As moedas não apareceriam até 700 A.C na Grécia, na Ásia Menor; eram fabricadas de electrum (ouro e prata) não porque estes metais tinham um valor básico mas porque eram sagrados – sol e lua. A diferença de valor entre elas sempre girava na proporção de 14:1, não porque a terra continha 14 vezes a quantidade de prata que de ouro, mas porque a Lua tarda 14 “Sóis” para crescer da lua minguante à cheia. As moedas puderam originar-se como fichas do templo simbolizando a parte que os devotos compartilhavam do sacrifício – souvenires sagrados, que mais tarde puderam ser trocados por bens já que tinham “mana”, como valor de uso.

(Esta função pode ter se originado no comércio na Idade da Pedra com cabeças de machado de pedra cerimoniais usadas nos ritos de distribuição do tipo Potlach¹).

Diferentemente, com as notas de crédito da Mesopotâmia, as moedas eram gravadas com imagens sagradas e eram vistas como objetos liminares, nodos entre a realidade cotidiana e o mundo dos espíritos (isto aponta ao costume de dobrar moedas para espiritualizá-las e lançá-las dentro de um poço, que são os olhos do outro mundo) a dívida em si mesma – o verdadeiro conteúdo de todo dinheiro – é um conceito altamente espiritual. Como o tributo (dívida primitiva) exemplifica a capitulação a um “poder legítimo” de expropriação mascarando em si a ideologia religiosa – mas com a dívida real diz respeito à habilidade unicamente espiritual de reproduzir-se a si mesmo como se fosse um ser orgânico. Inclusive agora permanece como a única substância morta em todo mundo que possui esse poder – “o dinheiro gera dinheiro”. A essas alturas o dinheiro começa a tomar um aspecto paródico vis-à-vis com a religião – parecendo o dinheiro desejar rivalizar com deus para converter-se em um espírito imanente na forma metafísica a qual, apesar de sê-lo, “governa o mundo”. A religião deve tomar nota dessa natureza blasfêmia do dinheiro e condená-lo como “contra natura”, anti-natural. O dinheiro e a religião entram em oposição - um não pode servir à Deus e a Mammon² simultaneamente; mas enquanto a religião continuar atuando como a ideologia da separação (o Estado hierárquico, a expropriação, etc) nunca poderá realmente dominar o problema-do-dinheiro.

Os reformistas uma e outra vez surgiram de dentro da religião para expulsar os prestamitas³ do templo, que sempre voltam – ao final, lentamente os prestamitas se convertem no Templo (não é casualidade que os bancos no decorrer dos tempos imitaram as formas da arquitetura religiosa).

De acordo com Weber⁴ foi Calvino quem finalmente resolveu o problema com sua justificação teológica para a “usura” – mas esta apenas merece atenção por parte dos Protestantes reais, como os Ranters⁵ e os Diggers⁶, aqueles que propuseram que a religião deveria de uma vez por todas entrar em total oposição com o dinheiro – e deste modo iniciaria o Milênio. Talvez pensassem que a Ilustração fosse a mais adequada para conseguir resolver o problema – desejando a religião como a ideologia da classe dominante e substituindo-a com o racionalismo (e as Economias Clássicas). Esta fórmula de qualquer forma não faria justiça àqueles iluministas que propuseram o desmantelamento de todas as ideologias de poder e autoridade - não ajudaram a explicar o porque da religião “oficial” falhar na hora de afirmar seu potencial como oposição e, ao contrário, apostou em prover suporte moral ao Estado e ao Capital.

Com a influência do Romantismo, no entanto surgiu – tanto dentro quanto fora da “religião oficial” – uma crescente sensação de espiritualidade como alternativa aos aspectos opressivos do Liberalismo e seus aliados intelectuais/artísticos. Por um lado esse sentido conduziu a uma forma conservadora-revolucionária de reação romântica (Novalis⁷, por exemplo) – mas por outro lado também se alimentou da velha tradição herética (a qual também começou com o nascimento da “Civilização” como um movimento de resistência contra a teocracia da expropriação) – e encontrou a si mesma com uma estranha nova aliança com o racionalismo radical (a então nascente “esquerda”). William Blake⁸, por exemplo, ou a Capillas Blasfemas, de Spence e seus seguidores, representam essa tendência. O encontro entre espiritualidade e resistência não é algum tipo de evento surrealista ou anômalo para ser aplanado ou racionalizado pela “História” – antes, ocupa uma posição nas profundas raízes do “radicalismo”; - e apesar do ateísmo militante de Marx ou Bakunin (em si mesmo um tipo de misticismo mudado ou “heresia”), o espiritual, todavia permanece indissoluvelmente ligado com a “Velha Boa Causa” que ajudou a criar.

Faz alguns anos Régis Debray⁹ escreveu um artigo apontando que apesar de as confiadas predições do materialismo do século XIX, a religião ainda falhava perseverantemente em desaparecer – e talvez fosse a hora para a Revolução preocupar-se sobre essa misteriosa persistência. Vindo de uma cultura católica, Debray estava interessado na Teologia da Libertação, que é uma projeção antiga quase herética dos pobres Franciscanos e o recorrente re-descobrimento do “ comunismo bíblico”. Se tivesse sido considerada parte da cultura protestante poderia ser uma referência ao século XVII, buscando sua verdadeira herança. Se fosse muçulmana poderia ter evocado o radicalismo dos xiitas ou ismailitas, ou o anticolonialismo neo-sufi do século XIX. Toda religião dá lugar a sua própria antítese interna uma e outra vez; toda religião tem considerado as implicações da oposição moral ao poder; todas contradições contém um vocabulário de resistência como também uma capitulação à opressão. Falando amplamente alguém poderia dizer que até agora esta “contra – tradição” – que está tanto fora como dentro da religião – tem constituído um conteúdo suprimido. A pergunta de Debray se referia ao potencial para sua realização, mas a Teologia da Libertação perdeu a maior parte de seu apoio dentro da igreja quando não pode manter durante mais tempo sua posição como rival (ou cúmplice) do Comunismo Soviético; e não pode manter esta função devido ao colapso comunista.

Mas alguns teólogos da Libertação provaram ser sinceros, e ainda persistem nela (como no México); Além disso, uma tendência inteiramente submergida e relacionada com o Catolicismo, exemplificada dentro da Ortodoxia (por ex. Bakunin), o Protestantismo, O Judaísmo, O Islamismo, e (de uma maneira diferente) o Budismo; e ainda, a maioria das formas de espiritualidade indígenas sobreviventes (por exemplo o Xamanismo) ou o sincretismo Afro-americano podem encontrar um ponto comum com várias tendências radicais com as religiões “maiores” em questões como meio ambiente, e a moralidade do anti-capitalismo. Apesar de alguns elementos de reação romântica, vários movimentos New Age e pós-new age podem também associar-se com esta ampla categoria.

Em um ensaio anterior havíamos esboçado as idéias parar crer que o colapso do Comunismo implicava no triunfo de seu único oponente, o Capitalismo; de acordo com a propaganda neoliberal só existe um mundo único agora; e esta situação política tem tido graves implicações para uma teoria do dinheiro como entidade virtual (autônoma, espiritualizada e todo-poderosa) do universo único de significado. Com estas condições tudo o que uma vez foi uma terceira possibilidade (neutralidade, retirada, contra-cultura, o “terceiro mundo”, etc) agora deve encontrar-se a si mesma em uma nova situação. Não mais existe uma segunda posição - como pode haver uma terceira? – As “alternativas“ têm sido reduzidas catastroficamente. O mundo único está agora em posição de esmagar qualquer coisa que uma vez escapou de seu abraço estático. Graças à desafortunada distração de prosseguir uma guerra fundamentalmente econômica contra o Império do Mal. Já não há terceiro caminho, não há nenhum mais. Tudo o que é diferente deve subsumir-se na uniformidade do Mundo Único – ou também se descobrirá como oposição a esse mundo. Tomadas essas teses como dadas, devemos perguntar onde se localizará a religião neste novo mapa de zonas de capitulação e resistência. Se “a revolução” foi liberada do incubo da opressão Soviética e esta agora é de novo um conceito válido, estamos finalmente com uma posição para oferecer uma tentativa de resposta à questão posta por Debray?

Tomando “a religião” como um todo, incluindo inclusive esses aspectos como o Xamanismo que pertencem a sociedade mais que ao Estado (segundo a antropologia de Clastres¹⁰); incluindo politeísmo, monoteísmo e no-teismo; incluindo misticismo e heresias tanto como ortodoxias, igrejas reformadas e novas religiões – o sujeito de estudo obviamente perde definição, rebeldia, coerência; e não pode ser questionado porque só geraria um babel de reações em vez de uma resposta. Mas a religião se refere a algo – chamá-lo uma certa variedade de cores no espectro do futuro humano – e como tal deve ser considerado (ao menos temporariamente) como uma entidade dialógica valida e como um sujeito teorizável. No movimento triunfal do Capital – referimo-nos ao seu momento processual – toda religião somente pode ser vista como uma nulidade, por exemplo, como um tipo de comodidade a ser empacotada e vendida, um recurso a ser desmontado, ou uma oposição a ser eliminada. Qualquer idéia ou ideologia que não pode ser subsumida ao “ Fim da História” do capital deve ser condenada. Isto inclui tanto a reação como a resistência – e desde já em maior parte a re-conexão não separativa (religare) da consciência com “ o espírito” como autodeterminação imediata imaginativa/ imaginária e criação de valores – a meta original de todo ritual e culto. A religião em outras palavras perdeu toda conexão com o poder mundial porque o poder migrou fora do mundo – abandonou inclusive o Estado e logrou a pureza da apoteose, como Deus que abandonou Anthony no poema e Cavafy¹¹. Os poucos Estados (majoritariamente islâmicos) onde a religião possui poder estão localizados precisamente dentro da região continuamente reduzida da oposição nacional ao Capital – (por conseguinte provêm de estranhos companheiros de cama como Cuba!). Como qualquer outra “terceira possibilidade” a religião se encontra com uma nova dicotomia: capitulação total ou a revolta. Por conseguinte, o “potencial revolucionário” da religião aparece claramente – ainda que não pareça claro se pode tomar a forma de reação ou de radicalismo - ou inclusive pode ser que a religião ainda não estivera derrotada – já ser sua negativa ir de um inimigo a um fantasma.

Na Rússia e Sérvia, a Igreja Ortodoxa parece haver-se lançado a sua sorte como reação contra à Nova Ordem Mundial e por conseguinte encontraram novos companheiros em seus velhos opressores Bolcheviques. Na Chechênia a Ordem Sufi Naqshbandi continua seu combate de séculos contra o imperialismo Russo. Em Chiapas há uma estranha aliança entre pagãos maias e católicos. Certas frações do Protestantismo americano foram dirigidas a um ponto de paranóia e resistência armada (mas inclusive os paranóicos têm algum inimigo real); enquanto a espiritualidade nativa-americana experimenta um pequeno milagroso revival – não um traje de fantasma manifestando-se nessa época, senão uma razoável e profunda postura contra a hegemonia da monocultura do capital.

O Dalai Lama algumas vezes aparece como um dos “lideres mundiais” capazes de dizer verdades tanto sobre os remanescentes da opressão Comunista como sobre a desumanidade capitalista; um “Tibet Livre” pode prover um foco para um bloco “inter-fé” de pequenas nações e grupos religiosos aliados contra o transcendente darwinismo social de consenso. O Xamanismo Ártico pode reemergir como uma ideologia pela autodeterminação de certas novas repúblicas Siberianas – e algumas novas Religiões (como o Neo-Paganismo Ocidental ou os cultos psicodélicos) que também pertencem por definição ou por defeito ao pólo de oposição.

No Islamismo tem-se visto a si mesmo como um inimigo do Cristianismo imperial e o imperialismo Europeu praticamente desde o momento do nascimento. Durante o século XX funcionou como uma terceira via tanto contra o Capitalismo como contra o Comunismo, e no contexto do novo mundo único constituiu por definição um dos poucos movimentos de massas que não podem englobar-se na unidade do consenso.

Desafortunadamente, a ponta de lança da resistência – “o fundamentalismo” - tende a reduzir a complexidade do Islã a uma ideologia artificialmente coerente - o “Islamismo” - a qual claramente falha ao falar ao desejo do humano normal da diferença e complexidade. O fundamentalismo já falhou em incumbir a si mesmo com as “liberdades empíricas” as quais devem constituir as demandas mínimas de uma nova resistência; por exemplo, sua critica à “usura” é obviamente uma resposta inadequada às maquinações do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. As “portas da interpretação” da Shariah¹² devem ser reabertas – e não fechadas para sempre – e uma alternativa totalmente realizada ao Capitalismo deve emergir de dentro da tradição. De qualquer maneira qualquer um pode pensar que a Revolução Líbia de 1969 tinha ao menos a virtude de intentar fusionar o anarco-sindicalismo de 68 com o igualitarismo Neo-Sufi das Ordens do Norte da África, e criar um Islamismo revolucionário – algo similar se pode dizer do “socialismo Xiita” de Ali Shariati no Irã, o qual foi afastado pela uleocracia¹ ³ antes de poder concretizar um movimento coerente.

O fato é que o Islamismo não pode ser rechaçado como o monólito puritano atrasado nos meios capitalistas. Se uma genuína coalizão anti-Capitalista chegar a aparecer no mundo, não teria acontecido sem o Islamismo.

A meta de qualquer teoria capaz de qualquer tipo de investigação sobre Islamismo, eu creio, está agora em fomentar suas tradições igualitárias e radicais, em retirar seus modos autoritários e reacionários de discurso. Dentro do Islamismo persistem míticas figuras como o “Profeta Verde” e guia oculto dos místicos, al-Khezer, que pôde facilmente converter-se em um tipo de santo patrono da proteção do meio ambiente; enquanto a história oferece modelos com o grande Emir Sufí Alg Algerino, lutador da liberdade de Abdul Qadir, cujo ultimo ato (no exílio, em Damasco) foi proteger os cristãos sírios contra a intolerância das ulemas¹⁴. Visto de fora, neste Islamismo existe potencial de um movimento “interfé” concernente com os ideais de paz, tolerância e resistência à violência pós-racionalista, pós-secular do neoliberalismo e seus aliados. Com efeito, pois, o “potencial revolucionário” do Islamismo ainda não foi realizado – mas é real.

Desde que o Cristianismo foi a religião que “deu nascimento” (nos termos de Weber) ao Capitalismo, a sua posição em relação a presente apoteose do Capitalismo é obviamente mais problemática do que a do Islã. Por séculos o Cristianismo tratou de delinear-se e construir um tipo próprio de mundo imaginário auto-suficiente, no qual alguma aparência do social pudesse persistir (ainda que aos domingos) – mesmo quando mantinha a ilusão acolhedora de alguma relação com o poder. Como um aliado do Capital (com sua aparente indiferença benigna às hipóteses da fé) contra o “Comunismo sem Deus”, o Cristianismo pôde preservar a ilusão do poder – ao menos até cinco anos atrás. Agora o Capitalismo não mais necessita do Cristianismo e o apoio social de que desfrutava vai se evaporar logo. A Rainha da Inglaterra já pensou em renunciar de seu cargo enquanto líder da Igreja Anglicana – e parece improvável que seja substituída pelo executivo principal de algum vasto Zaibatsu¹⁵ internacional! Dinheiro é deus – Deus está morto, de fato; o Capitalismo realizou uma paródia secreta do ideal Iluminista. Mas Jesus é um deus que morre e ressuscita – alguém diria que ele atravessou tudo isso antes. Mesmo Nietzsche assinou sua última carta “insana” como “Dionísio e o Crucificado”; no final essa é talvez a única religião que pode “superar” a religião. Dentro do Cristianismo aparecem um grande número de tendências (ou persistem desde o século XVII, como os quakers¹⁶) buscando reviver esse messias radical que limpou o Templo e prometeu o Reino aos pobres. Na América, por exemplo, pareceria impossível imaginar um movimento de massas realmente efetivo contra o Capital (um tipo de “populismo progressivo”) sem a participação das Igrejas. De novo a tarefa teórica começa a esclarecer-se; a necessidade não propõe algum tipo vulgar de “entrismo” no Cristianismo organizado para radicalizá-lo por uma conspiração vinda de dentro. O melhor seria encorajar o sincero e generalizado potencial para o radicalismo Cristão intrínseco como um honesto crente (apesar de tudo os existencialistas tem fé!) ou como um honesto simpatizante de fora.

Para testar esta teorização pegue um exemplo – digamos a Irlanda (de onde estou escrevendo isso). Dado que o os “Problemas” da Irlanda surgem majoritariamente do sectarismo, obviamente que se tomará uma postura anticlerical; de fato, o ateísmo deveria ser ao menos emocionalmente apropriado. Mas a ambigüidade inerente da religião na história Irlandesa deve ser lembrada: - Houve momentos quando laicos e padres Católicos apoiaram a resistência ou a revolução, & houve momentos quando laicos e sacerdotes Protestantes apoiaram a resistência ou a revolução. As hierarquias das igrejas geralmente demonstraram serem reacionárias – mas hierarquia não é o mesmo que religião. No lado Protestante temos Wolfe Tone & os Irlandeses Unidos - um movimento revolucionário “entre-crenças”. Mesmo hoje, tais possibilidades não estão mortas na Irlanda do Norte; o anti-sectarismo não é apenas um ideal socialista mas também um ideal Cristão. No lado Católico... anos atrás conheci um padre radical num festival pagão nas Ilhas Aran, um amigo de Ivan Illich¹⁷. Quando perguntei “Qual é exatamente sua relação com Roma?” respondeu-me, “Roma? Roma é o inimigo”. Roma perdeu sua influência na Irlanda nos últimos anos, derrubada pela revolta anti-puritana e pelo escândalo interno. Seria incorreto dizer que o poder da Igreja passou para o Estado, a não ser que também acrescentemos que o poder do Governo passou para a Europa, e poder da Europa passou para o capital internacional. O significado do Catolicismo na Irlanda está pronto para ser compreendido. Nos próximos anos poderemos ver tanto do exterior quanto do interior da Igreja um tipo de revival da “Cristandade Celta” – devota da resistência contra a contaminação do meio-ambiente, tanto físico como imaginário, e assim comprometida com a luta anti-capitalista. De qualquer modo, essa tentativa incluirá ou ao menos influenciará também o Protestantismo. Tal movimento de amplas bases pode facilmente encontrar sua expressão política natural no socialismo ou inclusive no anarco-sindicalismo, e serviria uma função particularmente útil como uma força contra o sectarismo & as regras das classes intelectuais. Assim, até na Irlanda a religião pode ter um futuro revolucionário.

Espero que estas idéias encontrem muito pouca aceitação dentro do tradicional anarquismo ateísta ou dos restos do “materialismo dialético”. O radicalismo Iluminista recusou-se durante muito tempo a reconhecer qualquer raiz que não seja remota no radicalismo religioso. Como resultado, a Revolução lança o bebê (consciência não ordinária) à banheira da Inquisição ou à repressão puritana. Apesar de Sorel¹⁸ insistir que a revolução necessita de um “mito”, ela prefere reduzir tudo à razão pura. Mas o anarquismo e o comunismo espiritual (como a religião em si mesma) não sumiram. De fato, convertendo-se em anti-Religião, o radicalismo recorre a um tipo de misticismo próprio, completo com o ritual, o simbolismo e a moralidade. Os comentários de Bakunin a respeito de Deus - de que se ele existisse teríamos que matá-lo – poderiam depois de tudo passar como pura ortodoxia dentro do Zen-Budismo! O movimento psicodélico, que oferece um tipo de verificação “científica” (ou ao menos experimental) da consciência não-ordinária, aponta para um grau de reaproximação entre a espiritualidade e as políticas radicais – e a trajetória deste movimento pode ter apenas começado. Se a religião “sempre” atuou escravizando a mente ou reproduzindo a ideologia da classe dominante, ela também “sempre” envolveu um tipo de entheogenesis (nascimento do deus interior) ou liberação da consciência; uma forma de proposta utópica ou promessa do “céu na terra”; e uma forma de ação militante e positiva pela “justiça social” como plano de Deus para a criação. O Xamanismo é uma forma de “religião” que (como mostrou Clastres) efetivamente institucionaliza a espiritualidade contra o surgimento da hierarquia e da separação – e todas as religiões possuem ao menos um traço xamânico.

que colaboraram com o anarquismo na revolução de 1911. O Judaísmo produziu o “anarco-sionismo” de Martin Buber e Gershlm Scholem (profundamente influenciado por Gustav Laundauer¹⁹ Toda religião pode apontar para uma tradição radical de algum tipo. O Taoísmo uma vez produziu os Turbantes Amarelos – ou as Tongs²⁰ e outros anarquistas de 1919), os quais encontraram sua mais eloqüente e paradoxal voz em Walter Benjamin²¹. O Hinduísmo deu lugar ao ultra-radical Partido Terrorista Bengali – e também a M. Gandhi, o único teórico com êxito da revolução não-violenta do mundo moderno. Obviamente o anarquismo e o comunismo nunca estarão de acordo com a religião nas questões de autoridade e propriedade; e talvez se possa pensar que “depois da Revolução” tais questões possam permanecer ainda sem se resolver. Mas parece claro que sem a religião não haverá uma revolução radical; a Velha Esquerda e a (velha) Nova Esquerda dificilmente poderão realizá-la sozinhas. A alternativa de uma aliança agora é como observar como a Reação restringe a força da religião e lança uma nova revolução sem nós. Gostando ou não, necessita-se de uma espécie de estratégia preventiva. A resistência requer um vocabulário no qual nossa causa comum possa ser discutida; e por isso estas propostas superficiais.

Mesmo assumindo que poderíamos classificar tudo acima com a rubrica de sentimentos admiráveis, ainda estaríamos longe de qualquer programa óbvio de ação. A religião não vai salvar-nos nesse sentido (talvez o contrário seja o correto!) – de qualquer maneira a religião enfrenta a mesma perplexidade que qualquer outra forma de “terceira posição”, incluindo todas as formas de antiautoritarismo e anti-Capitalismo radical. A nova totalidade e seus meios surgem tão penetrantes, como que para condenar todos programas de conteúdo revolucionário, a partir do momento em que qualquer “mensagem” está igualmente sujeita à subordinação no “meio” que o mesmo Capital. É claro que a situação é desesperançosa – mas apenas a estupidez tomaria isso como razão para o desespero ou como para o terminal aborrecimento da derrota. Esperança contra esperança – a esperança revolucionária de Bloch²² – pertence a uma “utopia” que nunca está totalmente ausente, mesmo quando parece menos presente; e pertence também a uma esfera religiosa em que a desesperança é o último pecado contra o sagrado espírito: - a última traição da divindade interior – o fracasso em converter-se em humano. O “dever Kármico” no sentido de Bhagavad Gita²³ – ou no sentido da “tarefa revolucionária” – não é algo imposto pela natureza, como a gravidade, ou a morte. É um presente livre do espírito – pode-se aceitá-lo ou recusá-lo - e ambas posições são perigosas. Recusar é correr o risco de morrer sem haver vivido. Aceitar é uma possibilidade mais perigosa, mas muito mais interessante. Uma versão da Aposta de Pascal²⁴ – não pela imortalidade da alma dessa vez, mas simplesmente por sua existência plena.

Usando a metáfora religiosa (que tentamos evitar ao máximo) o milênio começou cinco anos antes do final do século, quando o Mundo Único veio à luz e baniu toda dualidade. Contudo, visto da perspectiva Judaico-Cristã-Islâmica este é o falso milênio do “ Anti-Cristo”; o qual acaba por não ser uma “persona” (exceto talvez no mundo dos Arquétipos), mas sim uma entidade impessoal, uma força contra naturam – entropia disfarçada de vida. Nesta visão o reino da iniqüidade deve e será desafiado no verdadeiro milênio, o advento do messias. Mas o messias tampouco é uma só pessoa no mundo - é antes uma coletividade na qual cada indivíduo é realizado e desse modo (de novo metaforicamente ou imaginariamente) imortalizado. O “povo-como-messias” não entra na uniformidade homogênea nem na infernal separação do Capitalismo entrópico, mas na diferença e na presença da revolução – a luta, a “guerra-santa”. Apenas com estas bases podemos começar a trabalhar numa teoria de reconciliação entre as forças positivas da religião e a causa da resistência. O que oferecemos aqui é simplesmente o princípio do princípio.

Dublin, 01 de Setembro de 1996.


Este texto foi traduzido por Roberto B. (rsbortolon@yahoo.com.br) e Daya (ecodaya@yahoo.com.br).


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NOTAS

1. N. do T. O potlatch é uma cerimônia praticada entre diferentes grupos índigenas da América do Norte, como os Haida, os Tlingit, os Salish e os Kwakiutl. Consiste num evento sagrado de homenagem, geralmente envolvendo um banquete de carne de foca ou salmão, seguido por uma renúncia a todos os bens materiais acumulados pelo homenageado – bens que devem ser entregues a parentes e amigos. A própria palavra potlatch significa dar, caracterizando o ritual como de oferta de bens e de redistribuição da riqueza. A expectativa do homenageado é receber presentes também daqueles para os quais deu seus bens, quando for a hora do potlatch destes.

2. N. do T. Mammon é o ídolo pagão citado no Novo Testamento como um falso deus do culto à riqueza, à avareza e ao ganho material, é também considerado a personificação de um dos sete pecados capitais, a "ganância".

3. N. do T. Agiotas legalizados ou reconhecidos pelo governantes de um estado ou clero de uma instituição religiosa. Atualmente papel desempenhado por bancos e casas de crédito.

4. N. do T. Max Weber (nascido em1864 — falecido em 1920) foi um intelectual alemão, jurista, economista e considerado um dos fundadores da Sociologia. Em um dos seus trabalhos Weber demonstra como a ética religiosa protestante forneceu os fundamentos para a doutrina capitalista.

5. N. do T. Ranters (literalmente Faladores), era a denominação dada a uma seita inglesa do século XVII, considerada radical e herética por pregar a idéia de que Deus está essencialmente em todas as criaturas. Crença que levou seus membros a negar a autoridade da igreja, das escrituras, do clero e seus serviços, conclamando a todos a ouvirem seu "Jesus interior".

6. N. do T. Diggers (literalmente Escavadores), foi um movimento de trabalhadores rurais pobres, liderado por Gerrard Winstanley entre os anos de 1649 e 1650 na Inglaterra, que pretendia substituir a ordem feudal recentemente derrotada na Guerra civil inglesa por uma sociedade igualitária, agrária e cristã anticlerical.

7. N. do T. Georg Philipp Friedrich von Hardenberg (nascido em 1772 — falecido em 1801), Freiherr (Barão) von Hardenberg, mais conhecido pelo pseudônimo Novalis, foi um dos mais importantes representantes do romantismo alemão de finais do século XVIII e o criador da flor azul, um dos símbolos mais duráveis do movimento romântico.

8. N. do T. William Blake (nascido em 1757 – falecido em 1827) foi um poeta inglês, pintor e tipografo. Amplamente não reconhecido durante seu tempo de vida, o trabalho de Blake é hoje considerado seminal e significante tanto para a história da poesia quanto das artes visuais.

9. N. do T. Jules Régis Debray (nascido em 1940) é um filósofo, jornalista e professor francês. Foi seguidor do marxista Louis Althusser. Amigo de Fidel Castro e Ernesto Che Guevara, nos anos 1960 acompanhou o Che na guerrilha, especialmente na Bolívia, onde foi preso em 1967. Nesse mesmo ano escreveu sua primeira obra, "A Revolução na revolução". Pertenceu ao Partido Socialista Francês , do qual se distanciou por diferenças ideológicas com o ex-presidente François Mitterrand. Atualmente é mais conhecido como o criador da mediologia - o estudo crítico dos signos e de sua difusão na sociedade.

10. N. do T. Pierre Clastres (nascido em 1934 - falecido em 1977) fui um grande antropólogo e etnólogo de aspirações libertárias. Realizou pesquisas de campo na América do Sul entre os índios Guayaki, Guarani e Yanomami. Publicou Crônica dos índios Guayaki 1972, A sociedade contra o Estado 1974, e A fala sagrada - mitos e cantos sagrados dos índios Guarani 1974. Sua morte prematura, em um acidente de carro interrompeu a conclusão de textos que mais tarde seriam reunidos no livro Arqueologia da violência - ensaios de antropologia política 1980.

11. N. do T. Konstantínos Kaváfis, no alfabeto grego: Κωνσταντίνος Πέτρου Καβάφης, (nascido em 1863 — falecido em 1933) foi um poeta grego. Por vezes, seu nome aparece creditado como Constantine P. Cavafy. Nascido numa familía grega radicada no Egito e tendo vivido dos sete aos dezenove anos de idade em Liverpool, Kaváfis era um cético e questionava a Cristandade, o patriotismo e a heterossexualidade enquanto normalidade humana. Publicou 154 poemas e cerca de mais uma dúzia permaneceram incompletos ou no esboço.

12. N. do T. A Sharía ou shariah (em árabe شَرِيعَة šarīʿa, "caminho" ou "trilha"), chamada pela mídia ocidental de lei mulçumana los (e não lei islâmica, já que poderia se dizer que na realidade está inspirada no Islã, mas não é irrefutável como o Corão), é o corpo de Direito Islâmico. Constitui um código detalhado de conduta, no qual se incluem também as normas relacionadas às formas de culto e os critérios da moral e da vida, coisas permitidas ou proibidas,. e as regras que separam o bem do mal. É adotada pela maioria dos mulçumanos, em maior ou menor grau, como uma questão de consciência pessoal. Mas também pode ser instituída como lei por certos estados e também por tribunais que podem velar pelo seu cumprimento. Muitos paises islâmicos adotaram elementos da shariah em seus estatutos como por exemplo heresias e os testamentos para a regulação de atividades bancárias e contratos.

13. N. do T. Uleocracia é o nome dado a um regime teocratico regido por estudiosos ou sábios da religião islâmica, as ulemas. Os governos dos Talibans no Afeganistão e dos Aiatolás no Irã podem ser considerados bons exemplos de Uleocracia.

14. N. do T. Ulema (em língua árabe, علماء, Ulamā, singular Ālim) é o nome que dado aos estudiosos e doutores da "ciência religiosa" islâmica e da shariah ou lei islâmica (ulùm al-diniyya). Literalmente, a palavra significa sábio, doutor. A ulema enquanto instituição é mais poderosa no islamismo xiita (shi'a islam), onde o seu papel é institucionalizado, porém são subordinados aos herdeiros de Ali e à hierarquia dos mulás.

15. N. do T. No Japão o termo zaibatsu é a definição de um conglomerado de empresas que estão presentes em quase todos os setores da economia. Os executivos das empresas que tomam parte neste conglomerado buscam adquirir quantidades expressivas de ações de outras empresas deste mesmo grupo, em uma forma de acionismo cruzado.

16. N. do T. Quaker é o nome dado a um membro de um grupo religioso de tradição protestante, chamado Sociedade Religiosa dos Amigos (Religious Society of Friends). Criada em 1652, pelo inglês George Fox, a Sociedade dos Amigos reagiu contra os abusos da Igreja Anglicana, colocando-se sob a inspiração directa do Espírito Santo. Os membros desta sociedade, ridicularizados com o nome de quakers, ou tremedores, rejeitam qualquer organização clerical, para viver no recolhimento, na pureza moral e na prática activa do pacifismo, da solidariedade e da filantropia. Perseguídos na Inglaterra por Carlos II, os quakers emigraram em massa para a América, onde, em 1681, criaram sob a égide de William Penn a colónia da Pensilvânia.

17. N. do T. Ivan Illich (nascido em 1926 - falecido em 2002) foi um filosofo anarquista nascido na Áustria, foi padre na juventude, mas rompeu com a igreja se tornando um de seus maiores críticos. Foi também autor de uma série de críticas muito bem fundamentadas às instituições centrais da cultura ocidental contemporânea tais como a educação, o trabalho e o desenvolvimento econômico.

18. N. do T. Georges Eugène Sorel (nascido em 1847 – falecido em 1922) engenheiro formado pela École Polytechnique e teórico do sindicalismo revolucionário, muito popular na França, na Itália e nos Estados Unidos. Mas sua influência começou a decair depois de 1920. É um autor controverso quanto a linha política a qual adere. Suas idéias foram aceitas tanto pelo fascismo italiano quanto pela esquerda revolucionária deste país, influenciando consideravelmente o pensamento anarco-sindicalista.

19. N. do T. As tong são formas muito antigas de sociedades secretas chinesas, criadas para apoio mútuo e proteção, no passado eram horizontais e descentralizadas, fatores que dificultavam seu combate e aumentavam seu poder. As tong estavam envolvidas numa série de ações que poderiam ser consideradas pela perspectiva estatal como criminosas. Ao longo da história as tong já estiveram por trás do assassinato de déspotas imperadores chineses, pelo comércio do ópio e haxixe na China, chegando até os dias de hoje tomando parte também em esquemas de imigração ilegal de orientais para as Américas.

20. N. do T. Gustav Landauer (nascido em 1870 - falecido em 1919) foi um crítico feroz à burocracia e um ardente defesor do socialismo libertário. Atacou o marxismo autoritário que considerava por si só opressivo e obstáculo ao desenvolvimento e à libertação humana. Amigo pessoal de Martin Buber, propagandeador das práticas anarco-socialistas no Movimento Sionista e dos pioneiros do kibbutz. Dotado de uma preocupação especial com a dimensão espiritual do anarquismo, ele é lembrado por suas convicções de que o Estado é uma forma de relacionamento institucionalizado. Laundauer acreditava na não necessidade de uma revolução para superar o Estado, mas sim na possibilidade de uma mudança da natureza e da qualidade dos relacionamentos.

21. N. do T. Walter Benjamin (nascido em 1892 — falecido em 1940) foi um crítico literário e ensaísta alemão cuja obra tratou de temas referentes a transformação social a partir de uma perspectiva marxista. Foi associado à Escola de Frankfurt e publicou uma série de obras de profunda reflexão.Com a ascenção do nazismo tornou-se um refugiado e diante da perspectiva de ser capturado escolheu o suicídio.

22. N. do T. Ernst Bloch (nascido em 1885 — falecido em 1977) foi um filósofo alemão. A principal temática que perpassa a sua obra é a da Utopia que concebia como uma força revolucionária. Suas principais obras foram: Princípio Esperança, O Espírito da Utopia, Sujeito e Objeto em Hegel, entre outras. Exerceu forte influência sobre Erich Fromm, e diversos outros pensadores e se tornou referência obrigatória para todos que estudam o tema da utopia.

23. N. do T. A Bhagavad Gita (A Canção do Senhor) é um texto religioso Hindu. Faz parte do épico Mahabharata, embora seja de composição mais recente que o todo deste livro. Na versão que o inclui, o Mahabharata é datado no Século IV a.C. O texto, escrito em sânscrito, relata o diálogo de Krishna (uma das encarnações de Vishnu) com Arjuna (seu discípulo guerreiro) em pleno campo de batalha. Arjuna representa o papel de uma alma confusa sobre seu dever, e recebe iluminação diretamente de Krishna, que o instrui na ciência da auto-realização.

24. N. do T. Blaise Pascal (nascido em 1623 - falecido em 1662) foi um filósofo, físico e matemático francês, que como filósofo e místico criou uma das afirmações mais pronunciadas pela humanidade nos séculos posteriores, O coração tem razões que a própria razão desconhece, síntese de sua doutrina filosófica: o raciocínio lógico e a emoção.

O Palimpsesto

Nietzche estava tão certo que isso acabou por enlouquecê-lo - Charles Fourier estava tão louco que alcançou a sanidade perfeita.
Nietzche exaltou o sobre-humano como indivíduo (“Aristocracia radical’’) - a sua sociedade de espíritos livres iria, sem dúvida, consistir de uma “união individualista’’. Fourier exaltou as Séries Passionais - para ele o indivíduo sempre falharia em existir a não ser em uma associação harmônica. Opostas, estas visões - então como eu as vejo como complementares, pois iluminam da mesma forma, e sendo assim, perfeitamente exequíveis?
Uma resposta seria “dialética’’. Mais precisamente - “dialética taoísta’’, não como uma valsa, mas sim como o jazz - sutil, ardiloso e com diversos meandros. Outra resposta seria “surrealismo’’ - pense em uma bicicleta feita de corações e trovões. “Idealismo’’ não é uma resposta - um vai e vem zumbi, aquele triunfalismo de fantasmas em paradas de rua. “Teoria’’ não pode ser identificada com ideologia, nem mesmo como ideologia-em-processo, pois a teoria situou a si mesma separada de todas as categorias -porque a teoria nada mais é do que situacionista - já que ela não abandonou o desejo em detrimento da “História’’.
Logo, a teoria fica à deriva como um dos nômades de Ibn Khaldun, enquanto a ideologia permanece rígida e continua a construir cidades e imperativos morais; a teoria pode ser violenta, mas a ideologia é cruel. A “Civilização’’ nunca existiria sem ideologias (o calendário é provavelmente a primeira delas) porque a civilização emerge muito mais da concretização de categorias abstratas do que de impulsos “naturais’’ ou “orgânicos’’. Embora soe paradoxal, a ideologia tem a si própria como objeto de estudo. Ela justifica todos os banhos de sangue ou o canibalismo - mais precisamente, sacrifica o orgânico para reter o inorgânico - o “objetivo’’ da História que, no fim acaba se tornando... ideologia. A teoria, por outro lado, se recusa a abandonar o desejo e assim alcança uma objetividade genuína, um movimento voltado para fora dela mesma, que é orgânico e “material’’, e cognitivamente oposto ao falso altruísmo e alienação da civilização (sobre isso, tanto Nietzche quanto Fourier concordam).
Finalmente, eu iria propor o que chamo de Teoria Metapalimpsestítica.
Um palimpsesto é um manuscrito que é reescrito ao se escrever por cima do texto original, geralmente sob os pontos de vista corretos, e às vezes em mais de uma situação. Na maioria das ocasiões, é impossível definir a primeira camada da escritura; e para qualquer caso, um eventual “desenvolvimento’’ (exceto na ortografia) de uma camada para outra seria pura coincidência. As conexões entre elas não são sequenciais no tempo, e sim justapostas no espaço. As letras na camada B podem borrar as que estão na camada A, ou vice-versa, ou podem deixar áreas em branco sem qualquer marca ou inscrição, ainda assim ninguém pode dizer que a camada A “evoluiu’’ para camada B (pois não temos certeza qual delas é a original).
E as justaposições não seriam exatamente “aleatórias’’ ou “sem sentido’’. Uma possível conexão pode ser encontrada na realidade da bibliomancia surrealista, ou “sincronicidades’’ (como os antigos cabalistas disseram, os espaços em branco entre as letras podem ter algum significado mais importante do que as próprias letras). Até mesmo o “desenvolvimento’’ pode ser um modelo para a leitura - diacronicidades podem ser hipotetizadas, uma “história’’ é pelo manuscrito, camadas são datadas de acordo com as escavações arqueológicas. Enquanto não endeusarmos o “desenvolvimento’’, conseguiremos utilizá-lo como uma estrutura que possibilita nossa tese.
A diferença entre um palimpsesto manuscrito e um palimpsesto teórico é que o último não é fixado em lugar algum. Ele pode ser reescrito - reinscrito - com todas as camadas que o acrescem. E todas elas são transparentes, translúcidas, a não ser quando um agrupamento de inscrições bloqueiam a luz cabalística - (como ocorre em células de animação). Todas as camadas estão “presentes’’ na superfície do palimpsesto - mas o seu desenvolvimento (incluindo o dialético) se tornou invisível e, talvez, sem sentido.
Seria aparentemente impossível livrar a teoria metafísica do palimpsesto, da acusação de apropriamento indébito e subjetivo - um pouco de crítica aqui, uma proposta utópica ali - mas nossa defesa teria de consistir no fato de que não estamos procurando por ironias descartáveis, mas sim explosões de luz. Se tu estás sedento por desconstruções banais ou um hiperconformismo afetado, volte para a escola, arranje um emprego - nós estamos atrás de outros peixes para fritar. Embora tenhamos construído um sistema epistemológico - um método de aprendizado e conhecimento baseado na justaposição de elementos teóricos ao invés de seus desenvolvimentos ideológicos; num sentido não-histórico da coisa. Também evitamos outras formas de linearidade, como a seqüência e exclusão lógica. Se admitirmos a história dentro desse esquema, podemos utilizá-la apenas como mais uma forma de justaposição, sem a fetichizar como absoluta - o mesmo vale para a lógica, etc.
Essa aproximação lúdica à teoria não deve ser confundida com “relativismo moral’’ (a desvalorização dos valores), de onde é resgatada pela nossa “teleologia subjetiva’’. Ou seja, nós (e não a “história’’) estamos à caça de propósitos, objetivos, objetos -dedesejos (a revalorização dos valores). A natureza criativa dessa ação vem da evasão da imaginação (ou “Imaginação Criativa’’, como
H. Corbin e os Sufis a chamam) - há também a visionária disciplina da “crítica paranóica’’ (S. Dali), a revalorização subjetiva das categorias aestéticas. “O pessoal é o político.’’ Justaposição, superposição e padrões complexos. Embora produzam uma unidade maleável, (como o monismo escondido do politeísmo, ao invés do dualismo escondido do monoteísmo) -paradoxalmente como método epistemológico - de alguma forma similar à “epistemologia anarco- dadaísta’’ de Feyerabend ( Contra o método). “Etiquetas? Nós não precisamos de suas malditas etiquetas!’’
Eu gostaria de reiterar o fato de que todo o debate teórico-histórico sobre a “Arte’’ como uma categoria separada (um museu de fetiches), assim como uma fonte para a reprodução da miséria e alienação a partir da exclusão dos “não-artistas’’ do prazer da criatividade (ou “trabalho atrativo’’, como disse Fourier). Quero mencionar a proposta situacionista pela “supressão e realização da arte’’, por exemplo, sua supressão revolucionária como uma categoria, e sua realização no nível da “vida cotidiana’’ (ou seja, da vida em detrimento do espetáculo).
Essa proposta é baseada na presunçosa afirmação de que a Arte falhou em funcionar como “avantgarde’’ (leia-se: “vanguarda’’) quando os surrealistas aderiram ao Partido Comunista - e simultaneamente, na galeria/museu “Mundo da Arte’’ do objeto fetichista - embora alegando ideologias espúrias e elitismo em um desastre espetacular. Nesse ponto, os remanescentes da avantgarde iniciaram um processo para reverterem-se de Ideologia e objetificação (mais ou menos a partir do dadaísmo de Berlim) como o Letrismo, Situacionismo, Não-Arte, Fluxus, arte postal, neoísmo, etc - onde a ênfase mudou da vanguarda para uma descentralização radical do impulso criativo, longe das galerias e museus para privilegiados - em direção ao desaparecimento da “Arte’’ e à volta do criativo na sociedade.
Claro que os museus também compraram esses “movimentos’’, como se para provar que qualquer coisa (até a “anti- arte’’) pode ser um objeto. Cada um desses movimentos pós- vanguarda caíram perante a confusão e a tentação, e tentaram se comportar como os vanguardistas clássicos. E todos falharam, como o surrealismo falhou em libertar a obra de arte da banalização de seu papel como Objeto.
Consequentemente, o mundo artístico engoliu e interiorizou a teoria da arte, destinando-a -se levada a sério - à auto- destruição. Galerias prosperam (ou sobrevivem) com um niilismo que só pode ser contido através da ironia, e que de outra forma iria corroer e acabar com as paredes dos museus. Este ensaio, por exemplo, será imprimido no catálogo de uma galeria, embora ele perpetre a ironia de clamar pela supressão e realização da arte, partindo de dentro da mesma estrutura que condiciona a alienação do não-artista e a fetichização da obra de arte. Bom, foda- se a ironia. Só podemos esperar que cada compromisso seja o último deles.
Aqueles que falharam em ver essa situação como uma malária devem parar a leitura - a teoria já é o bastante sem precisar explicar sua própria náusea - ad nauseam.
A fascinação do século vinte com o “primitivo’’ e o “ingênuo’’ serve como medida, primeiro, pela exaustão da “História da Arte’’; segundo, pelo desejo utópico por uma arte que não fosse uma categoria separada, mas congruente com a vida em si. Sem ironia. Arte como uma brincadeira séria. Os artistas imitaram as formas primitivas e ingênuas sem perceber que toda a produção dessas mesmas formas depende da ausência estrutural da alienação social (“arte tribal’’) ou individual. Essa falta de rompimento, de dualidade na arte africana, javanesa, ou no manicômio, foi o que fez artistas como Klee e sentirem inveja.
Em uma sociedade livre da “malária’’ (ao menos em proporções trágicas) uma pessoa pode esperar ver que “o artista não é alguém especial, mas que alguém especial é um artista.’’ Coomaraswamy pensava na Indonésia quando inventou esse slogan, que eu já tinha ouvido em Java que “Todos devem ser artistas’’ - um tipo de versão mística da teoria da supressão-e realização. Não é precisamente a especialização (do trabalho ou da cognição) que origina a náusea, através dessa leitura, mas sim a separação - fetichismo, alienação. Como cada pessoa é um tipo especial de artista, alguns deles irão se especializar nos grandes poderes integrativos da criatividade - contando as principais histórias da tribo - a criação de Valor e “Significado’’ - que pode ser chamado de “função barda’’.
Em algumas tribos essa função é dividida entre vários indivíduos, mas é sempre associada com uma concentração de mana. Em culturas “bárbaras mais desenvolvidas (como os Celtas) a função é institucionalizada em certo grau - o bardo é o “ sábio legislador’’ de uma sociedade de artistas. A função barda focaliza e os integra.
Se procurarmos um momento simbólico onde ocorre a “quebra’’, e a malária começa a tomar lugar, poderemos escolher uma passagem na República, de Platão, onde os poetas são banidos da utopia como “mentirosos’’ - como se a Lei (em categoria abstrata) fosse a única função integrativa possível, excluindo a imaginação nômade como oposição, como anti- verdade, como caos social. A racionalidade é agora imposta baseada na organicidade da vida -o bem é visto na natureza como “ser’’, enquanto tudo extrínseco à natureza é associada ao mal.
Na Renascença, o artista volta a se expressar como indivíduo às custas da função integrativa. Esse momento marca o início do “Romantismo’’, o desaparecimento do artista da sociedade, e da obra de arte da vida. O artista como ego prometheano, a obra de arte como “bonita’’ (leia-se: inútil) - esse exemplo mede a lacuna aberta entre uma elite aestética, e uma massa condenada à esterilidade e ao kitsch. E ainda é possível enxergar um motivo nobre e corajoso nesse processo, o qual é refletido na liberdade boêmia do artista, assim como na crítica do mesmo à sociedade e sua cruel monotonia - pois o artista irá se tornar um “legislador iletrado’’, um profeta sem honras - o herói romântico, inspirado e amaldiçoado pela mesma realidade.
O artista anseia, mais uma vez, preencher a função barda, para criar significados aestéticos para si e para a tribo. Colérico por se ver rejeitado a esse papel, ele sai de controle e entra em uma alienação cada vez maior - depois uma rebelião assumida - e finalmente, silêncio. A trajetória romântica se realiza mais uma vez.
A Renascença também testemunhou a primeira tentativa moderna de o integral (“a ordem da intimidade’’) através do poder combinado da arte e da mágica - que são na verdade vistas como relacionadas naturalmente pelas suas profundas estruturas - essencialmente linguísticas. O elemento unificador é a “ação à distância’’, e a síntese de todas essas ramificações é o Livro Emblema que junta, de acordo com o estudo de hieróglifos, a imagem, a palavra, e às vezes música, para acarretar mudanças morais (espirituais) no leitor E no mundo real.
O objetivo da Renascença Hermética/Artista era utópico, e nessa ambição pode ser visto o desejo de reanimar a função barda, e dar significado à experiência da “tribo’’, influenciar o consenso realidade- paradigma, salvar o mundo através da arte. Projetos românticos desesperados de Gaugin, Rimbaud, Wagner, Artaud, os Surrealistas - o artista como mago- profeta do desejo revolucionário.
Por causa de todos esses fracassos, e da acomodação nauseante com o mundo da arte feito de objeto capitalista, essa mágica tradição é nossa herança, e de alguma forma nós ainda acreditamos nela. Até mesmo acreditar na supressão da arte é acreditar que ela é importante e significativa, ao menos em face de seu desaparecimento. Mais adiante, a “liberdade’’ do artista parecia merecer alguma proteção - e distribuição - se ao menos esta fosse POR algo, e não somente DE algo. Não obstante a pobreza, solidão, e sentimentos de futilidade, nós estamos nessa margem porque gostamos dela, e porque o risco faz bem para nossa arte. Nesse sentido, ainda somos românticos.
Ainda que sejamos forçados a admitir que esse projeto mágico- revolucionário falhou - frequentemente. O fetichismo dos objetos causa um efeito negativo no feedback - e assim como ciência hieroglífica, este caiu nas mãos de publicitários, marketeiros do “discurso’’ espetacular (ou “simulacro’’, como disse Baudrillard), os reais porém escondidos legisladores dessa realidade virtual. A proposta para a supressão e realização da arte é a afirmação culminante da tradição romântica- hermética de oposição, o último “desenvolvimento’’ possível em uma progressão dialética que nos leva ao impasse atual.
Se observarmos a “História da Arte’’ desta perspectiva diacrônica, iremos nos encontrar em uma cul- de- sac, pegos de surpresa em um paradoxo impossível onde o propósito da arte é a destruição da mesma, para que assim “todos’’ possam ser artistas. Para nós - como artistas - isto constitui-se em uma rua sem saída. O que podemos fazer? A História nos traiu.
O que acontecerá se abandonarmos esta perspectiva diacrônica? E se superpusermos todos os “estágios do desenvolvimento’’ em um palimpsesto que só pode ser lido como uma sincronicidade? E se as tratarmos como teorias, todas visíveis sobre uma única superfície, potencialmente relacionados não no tempo, mas no espaço?
Mais uma vez, devemos insistir que nossa pesquisa palimpsestítica não deve ser confundida com alguma viagem de férias banal através de um cemitério de categorias aestéticas. Estamos procurando Valores - ou um poder imaginário para criá-los (ao saber nossos “verdadeiros desejos’’, como alguns dizem), e nossa procura não é fria e detalhista por definição -não é frívola, mas séria - não sóbria, mas prazerosa - pois, para os bardos, nada é mais sério do que nossa intoxicação com o lúdico ato da criatividade.
Então, nós pegamos toda a discussão desenvolvida acima e a condensamos em um “manuscrito’’ onde toda teoria é escrita em cima de outra, e assim adiante. Como profetas estudando as nuvens ou os onze tipos de iluminação, como magos com espelhos obsidianos para decorrer sobre alfabetos angelicais, nós agora estudamos “História da Arte’’ como se ela nunca tivesse ocorrido, como se todas as possibilidades fossem um eterno presente, infinitamente fluido. Contradições evidentes apenas escondem harmonias ocultas, “correspondentes’’- toda e qualquer justaposição se prova fortuita. “Palimpsestomancia’’.
Assumindo que as teorias que discutimos diacronicamente estão agora arranjadas em sincronia na página de nosso palipsesto, vamos experimentar uma leitura para procurar coincidências inesperadas e reveladoras. A teoria de Fourier sobre o trabalho atrativo, por exemplo, poderia ter sido superposta na Cosmologia de Hesiod, onde os três princípios da existência eram o Caos, Eros, e a Terra. Agora o desejo pode ser visto como uma força que transforma a pura espontaneidade da Imaginação em formas da natureza, ou o “princípio essencial da matéria’’ - o desejo como princípio organizador da criatividade - o desejo como a única fonte possível para a sociedade. “Ação à distância’’, o cerne do paradigma Hermético, deveria ter sido banido da filosofia mecanicista que prevaleceu e conquistou a ciência no século XVII; mas continuava se esgueirando nos discursos, primeiro como uma “explanação’’ para a gravidade (“atração’’), e atualmente em diversos lugares - as quatro forcas da física quântica, a influência do “Estranho Atrator’’ na matéria desorganizada, etc.
Embora a mágica tenha fracassado em “trabalhar para os hermenêuticos da Renascença na mesma medida em que, por exemplo, funcionou com Bacon e Newton, ainda que a ciência hieroglífica possa ser revivida na forma de uma ferramenta epistemológica em nosso estudo acerca da nomeação dos termos (ambíguos). Fenômenos como a linguagem e outros códigos semânticos que - literalmente - nos influenciaram à distância. Os Hermenêuticos acreditavam em emanações na forma de raios que transfeririam o “poder moral’’ de uma imagem (sua influência aumentada com as cores apropriadas, cheiros, sons, palavras, fluidos astrais, etc.) para a consciência humana “à distância’’.
A visão, ou o reflexo, o som, a inflexão, cria lembranças, fragmentos e agrupamentos de “significados’’ na “alma’’ de quem está vivenciando aquilo. Por um processo de “mutabilidade’’ onde tudo é simbolizado paradoxalmente ao mesmo tempo, cientista hieroglífico conjuga feitiços em uma densa floresta de ambiguidades, que é mais precisamente o reino do artista - na verdade os alquimistas foram conhecidos como os “artistas’’ da “Arte Espagírica’’. Assim como o alquimista muda o mundo (dos metais), há também quem escreve o Livro dos Emblemas ou quem levanta monumentos públicos (leia-se: obeliscos) muda o mundo cognitivo e de interpretação “moral’’ pela análise de imagens e símbolos. Deixando de lado a questão das “emanações”, nós aterrisamos em uma teoria da arte oculta que foi passada adiante (via Blake, por exemplo) para os Românticos e para nós.
Como Ítalo Calvino aponta, toda arte é “política’’ - invariavelmente - uma vez que toda obra de arte reflete a arrogância do artista sobre o “tipo propício’’ de cognição, de relação com a consciência individual para agrupar consciências (teoria aestética), etc, etc. De certa forma, toda arte é utópica no sentido de que faz uma afirmação (às vezes de forma vaga) sobre como as coisas deveriam ser.
Entretanto, o artista pode se recusar a admitir essa dimensão “política’’ - algumas distorções podem acotecer. Esses artistas que abandonaram a idéia hermética/romântica de “influência moral’’ frequentemente revelam sua inconsciência política para semiólogos e dialéticos mais atentos. “Entretenimento puro’’ acaba sendo rebocado com um ectoplasma de reação perpendicular, e “arte pura’’ costuma ser ainda pior.
Contrastando com isso, esta inconsciência artística pode inadvertidamente revelar o que Walter Benjamin intitulou “Vestígio Utópico’’ - um tipo de fragmento gnóstico do desejo infiltrado em cada produção humana, sem distinguir o quão reproduzida ela foi. Publicidade, por exemplo, usa esse vestígio para vender a imagem de uma reprodução que promete (no inconsciente) mudar o mundo de uma pessoa, trazer uma vida melhor. É claro que isso nunca vai acontecer - de outra forma, seu desejo seria concretizado e você iria parar de gastar dinheiro em imitações baratas do desejo. Tantalus pode cheirar a comida e enxergar o vinho, mas nunca prová-los - ele é o consumidor perfeito, que paga (eternamente) por uma imagem. Nesse sentido a publicidade é mais Hermética das artes modernas.
O vestígio utópico também pode ser analisado em outra forma de arte “maldita’’, pornografia - que age diretamente ao trazer a inconsciência para uma cognição consciente à base do excitamento erótico. É o desejo que destitui esse vestígio e organiza o caos tendo em vista o modo “como as coisas devem ser’’. A masturbação é um epifenômeno - o efeito real da pornografia serve para inspirar sedução (como em Dante, onde os amantes pecam após a leitura de romances Arthurianos, juntos no jardim). Ignorantes da Direita estão corretos quando acusam as artes eróticas de influenciar e até mudar o mundo, e liberais de esquerda estão errados quando implicam que o pornô deveria ser liberado porque é “inofensivo’’ - porque é “apenas’’ arte. A pornografia é boa para o corpo político, e tanto quanto é “perversa’’ ela prega por uma revolução liberal do desejo - o que explica exatamente porque alguns tipos de pornografia são censurados e proibidos em todas as “democracias’’ do mundo atualmente. Uma vez que o pornô comercial é pduzido em um nível inconsciente e revolucionário, a sua “revolução’’ proposta é sem dúvida ambígua; mas não há nenhuma razão teórica porque o erótico não pode ser utilizado de acordo com a ciência hieroglífica para fins utópicos.
Isso nos leva à questão de uma poesia utópica. Nietzche e Fourier teriam concordado que a arte não é apenas um reflexo da realidade, mas sim uma nova realidade que pretende se impor no mundo do pensamento e da ação através de meios “ocultos’’, via poderes dionísiacos e correspondências herméticas (tendo em vista suas fascinacões mútuas por óperas como referência artística, e seus meios de propagar suas “filosofias’’).
Nossa “louca’’ síntese de Nietzche e Fourier irá revelá-los como vizinhos dos hermenêuticos da Renascença, que também buscaram programas políticos utópicos através da ação nos níveis da percepção aestética, e dos prazeres da criatividade que constitui os meios e os objetivos do projeto utópico. Mas, em Fourier, encontramos a verdadeira noção divina que essa realização aestética virá a se manifestar como ação coletiva - de que a sociedade se reconstituirá na forma de uma obra de arte.
Cada indivíduo, agora com poderes aumentados pela Associação Harmoniosa e os Agrupamentos Passionais, se tornará um “artista diferenciado’’. Após descobrir seus “desejos reais’’, estes se tornarão produtivos em um mundo dado a genuínas orgias de criatividade, erotismo, “gastronomia’’, e brilhantismo aestético. Assim como o shamanismo é “democrático’’ em algumas tribos, onde toda pessoa é uma visionária, Fourier eleva cada membro da falange ao status de “grande artista’’. Naturalmente, alguns serão ainda maiores (leia-se: mais passionais) que outros, mas nenhum deles será excluído - o “mínimo utópico’’ garante poder criativo. Nietzche fala da “vontade de Poder como Arte’’; Fourier fez disso o princípio de uma utopia anarquista onde a própria força organizadora é o desejo.
Nota-se, em nosso palipsesto, duas imagens contraditórias: primeiro, do artista como “bardo’’, e como um rebelde romântico em um mundo que nega a função barda; segundo, a supressão- e- realização- da- arte, onde o “artista’’ desaparece de uma categoria privilegiada para reaparecer (como em “Aqui vem todo mundo’’, de Joyce) em uma eventual democratização xamânica da Arte.
Seria possível intuir - baseado em nossa teoria palimpsestítica anti- diacrônica - de que esse paradoxo possa ser apenas aparente, uma falsa dicotomia? Ou até mesmo se for uma paradoxo real, poderíamos construir um paradoxalismo capaz de reconciliar aposições em “nível superior’’ (coincidentia opositorum)? Ou ainda, como Alice, podemos entreter diversas noções contraditórias conflitantes “antes do café da manhã’’? Poderíamos “salvar’’ a Arte de um fracasso retumbante, e o artista do jugo da elite e da vanguarda, e ao mesmo tempo realizar a “revolução do cotidiano’’ e a utopia do desejo?
Para conseguir chegar a uma resposta, eu preferiria largar o problema da Arte e o artista, e me concentrar na condição da obra de arte. Afinal de contas, o que podemos dizer a respeito dos preceitos do artista, que (a despeito de toda a “tragédia’’) ainda é um espírito livre no mundo dos objetos, o único que sabe chamar atenção, o único abençoado com a obsessão, e o único praticante do trabalho atrativo? [Nota: é claro que aqui estou definindo o “artista’’ como alguém livre e obsessivo, capaz de prestar atenção, esteja ele inserido ou não nas “artes’’, ou na contracultura, etc, etc.]
Comparado a isto, a tragédia real parece envolver não o artista, mas a obra de arte. Ela é alienada como objeto tanto pelo produtor quanto pelo consumidor. Seja ela retirada da “vida cotidiana’’ como um fetiche único, ou que tenha sua “aura’’ roubada através da reprodução. Na economia do simulacro, a imagem se solta e flutua livre de todas as referências - mesmo que as imagens sejam “recuperadas’’, até mesmo (ou especialmente) as mais “transgressoras’’ ou mais “subversivas’’, elas acabam sem valor algum, pelos objetos que se tornaram. A galeria de arte é o terminal e o museu é o término desse processo de alienação. O museu representa a última fixação do preço como significante da imagem. Esqueça a questão de “salvar’’ o artista; é possível a “salvação’’ da obra de arte?
Para “justificar’’ e “redimir’’ a obra de arte seria necessário removê-la da economia do objeto. A única economia capaz de sustentar esse sistema seria com uma “economia do presente’’, da reciprocidade. Este conceito foi sistematizado pelo antropólogo M. Mauss na sua obra-prima, O Presente, e exerceu grande influência em diversos pensadores, como Bataille e Levi Strauss. Foi exemplificado pelas cerimônias potlach realizadas sociedades indígenas do noroeste americano, mas ela pode ser hipotetizada como universal. Antes que o “dinheiro’’ e o “contrato’’ emergissem, toda sociedade humana se baseava no Presente, e na sua reciprocidade. Antes da conceitualizacão de “excesso’’ e “escassez’’ onde prevalece a apreensão acerca da “excessiva’’ generosidade da natureza e da sociedade, o que deve ser gasto (ou “expresso’’, de acordo com Nietzche) em produção cultural, trocas aestéticas, ou - especialmente - no festival.
No contexto da economia do presente, o festival é o poder focalizador do social -o nexo da troca - na verdade, uma forma de “governo’’. Mas como a economia do presente dá espaço para a economia do dinheiro, o festival começa a ficar com um aspecto “sombrio’’. Ele acaba por virar de cabeça pra baixo toda a ordem social, uma queima de excessos permitida, que irá limpar as pessoas de seus ressentimentos naturais contra a alienação e a hierarquia, uma desordem que paradoxalmente restaura a ordem.
Mas como a economia do dinheiro cede passagem para a economia dos objetos, o festival toma outra direção com o significado. Ao preservar o Presente dentro da matriz de um sistema que é hostil ao próprio Presente, o festival, de modo saturnaliano, tornou-se um foco genuíno de oposição ao consenso econômico. Esta oposição permanece inconsciente, e o espetáculo pode recuperar suas energias (pense no Natal!) - mas o festival espontâneo permanece como uma fonte real de energia utópica.
O agrupamento, festas, raves, eram para a autoridade moderna perigosos exemplos de de desordem total, precisamente porque eles tentavam retirar a energia do Presente da economia dos objetos. Os movimentos pós- surrealismo e pós- situacionismo, que foram carregados no projeto da supressão -e- realização têm desenvolvido teorias festivas. O barulho de Jacques Attali, que explora supressão -e- realização em termos musicais (ele chama isso de “estágio de composição’’) é baseado na análise feita sobre uma pintura de Breughel durante um festival. Sem dúvida, o festival é um componente importante para qualquer teoria que se ofereça a restituir o Presente ao centro do projeto criativo?
A obra de arte está “salva’’? Seria melhor perguntar se ela possui uma dimensão ou função lógica. Ela pode me redimir? E como isso vai ser feito a menos que seja libertada da alienação de economia festiva? A Arte nasceu livre e está acorrentada a tudo e todos - obviamente, a “tarefa revolucionária’’ do artista consiste não em fazer Arte, e sim libertá-la. De fato, parece que se desejarmos trabalhar pela supressão -e- realização nós devemos (paradoxalmente?) reviver aquela perigosa visão romântica do artista como rebelde, como criador- destruidor - o revolucionário oculto. Se a vida criativa (incluindo valor- criação) pode ser chamada “liberdade’’, logo, o artista é um profeta (bardo) de sua liberdade - assim como Blake acreditava. Pelos meios da ciência hieroglífica, o artista se insere, codifica, engloba, educa, expressa, acena. A obra de arte como sedução pede para ser cedida e seduzida pelo brilhantismo de todos - disto carece reciprocidade. Não a vida como ARTE (o que seria uma forma intolerável de dadaísmo) - e sim arte como VIDA.
No fim, há algo para se fazer com todo esse contexto da galeria, do museu, da economia dos objetos? Existe um modo de evitar e subverter o processo de recuperação? Possivelmente. Primeiro, porque o mundo das galerias vêm se desvalorizando, acabam se desesperando e tentam de tudo. Segundo, porque a obra de arte, a despeito de tudo, ainda retém um toque de mágica.
Se nós artistas formos forcados (pela penúria, por exemplo) a trabalhar para o mundo- das- galerias, ainda poderemos nos perguntar sobre a melhor maneira para “continuar a luta’’ e agitar os espíritos das pessoas pela causa do caos criativo. Mas NÃO através do ainda- mais- arcano elitismo, claro. E NÃO através do cruel realismo socialista e suas artes “políticas’’. NEM pense em cultos mórbidos para “transgredir’’ e ser moderno. NÃO use uma hiperconformidade irônica.
Podem existir muitas estratégias para “aborrecer de dentro’’ o mundo das artes -mas eu posso pensar em uma que não envolve destruição impensada. Faça isso: - toda obra de arte pode ser feita da maneira mais transparente possível de acordo com os princípios da poesia utópica e a ciência hieroglífica.
Cada obra seria uma “máquina de sedução’’ ou um motor mágico feito para acordar os verdadeiros desejos, raiva na repressão desses desejos, fé na não- impossibilidade destes desejos. Algumas obras de arte consistiriam de arranjos para a realização do desejo, outras iriam invocar e articular o objeto/subjeto do desejo, outros esconderiam tudo com mistérios, e o resto ficaria completamente translucente. A obra de arte deve desviar atenção de si como o ícone privilegiado, ou fetiche, ou objeto de desejo, e ao invés disso focar sua atenção nas energias libertárias.
Os trabalhos de alguns “artistas- terra’’, por exemplo, que é transmutar paisagens lugares utópicos ou em cenas eróticas; os trabalhos de “artistas de instalação’’, a quem suas micro-realidades têm memoria, desejo, jogo, todas as energias já comentadas por Bachelard no livro “Imaginacão’’, que contem sua “psychoanalysis of space’’ - arte deste tipo pode ser mostrada ou documentada no contexto do mundo da Arte, em galerias ou museus, apesar de que o seu propósito e efeito iria dissolver aquelas estruturas e “enfraquecer’’ na vida cotidiana, onde seria deixado um vestígio maravilhoso, e uma sede por mais.
Estratégias similares podem ser executadas em outras obras de arte - livros, música, ou ainda o festival como criação coletiva. Em todos os casos, acho que um trabalho mais efetivo pode ser feito do lado de fora dessas instituições com discursos aestéticos, até mesmo com ataques a elas. Entretanto, nós devemos aproveitar nossa vantagem de acesso ao mundo das Artes, com todos os seus privilégios, e utilizá-los como uma catapulta para um assalto, tendo em vista sua exclusividade, seu elitismo profissional, sua irrelevância - e seu poder.
As táticas e específicas desta estratégia da insurreição ficará às mãos de artistas individuais e com o poder de suas criações. O objetivo é uma generosidade insana, uma doação maior que a de qualquer transação, um brinde grátis impossível de receber. A obra de arte se torna o vírus do excesso, uma instigação ao desejo utópico - um dispositivo soteriológico. Nada faz mais sentido do que as tentativas da Arte de se auto- destruir. O propósito disto não é para destruir o espaço de criatividade, mas para abri-lo - não para excluir, mas para convidar todos a entrar. Nós não queremos sair; queremos (finalmente) aterrissar. Declarar o Jubileu.

Traduzido por Rodrigo Oliveira