TAZ - ZONA AUTÔNOMA TEMPORÁRIA - Parte 2
Tradução: Patricia Decia & Renato Resende
"FOMOS PARA CROATÃ"
NÃO QUEREMOS DEFINIR a TAZ ou elaborar dogmas sobre
como ela deve ser criada. O nosso argumento é que ela foi criada, será
criada e está sendo criada. Portanto, será mais proveitoso e mais interessante
olharmos para algumas TAZ passadas e presentes, e especular sobre
manifestações futuras. Evocando alguns protótipos podemos vir a ser
capazes de avaliar o escopo potencial deste complexo, e talvez até mesmo
vislumbrar um "arquétipo". Em vez de tentar qualquer tipo de
enciclopedismo, adotaremos uma técnica franco-atiradora, um mosaico de
vislumbres, começando de forma arbitrária com os séculos XVI/XVII e o
estabelecimento do Novo Mundo.
A abertura do "novo" mundo foi concebida desde o principio
como uma operação ocultista. O mago John Dee, consultor espiritual da
rainha Elizabeth I, parece ter inventado o conceito de "imperialismo
mágico" e infectado toda uma geração com ele. Halkyut e Raleigh caíram
sob seu feitiço e Raleigh usou suas conexões na "Escola da Noite" - uma
ordem secreta de pensadores de vanguarda, aristocratas e iniciados - para
incentivar as causas da exploração, colonização e mapeamento. A Tempestade foi uma peça de propaganda para esta nova ideologia, e a
colônia Roanoke7 seu primeiro experimento.
A visão alquímica do Novo Mundo o associou com matéria- prima ou hyle (o nada), o "estado da Natureza", inocência e possibilidade
total ("Virgínia"), um caos ou essencialidade que o iniciado transmutaria em
"ouro", isto é, em perfeição espiritual assim como em abundância material.
Mas essa visão alquímica é, em parte, também, gerada por uma
real fascinação pelo incipiente, uma secreta simpatia por ele, um sentimento
de ternura por sua forma sem forma, que tomou como símbolo para seu foco
o "Índio": o "Homem" em seu estado natural, ainda não corrompido por
nenhum "governo". Caliban, o Homem Selvagem, é instalado como um
vírus dentro da própria máquina do Imperialismo Oculto.
Florestas/animais/seres humanos são investidos desde o início com o poder
mágico do marginal, do desprezado e do proscrito. Se, por um lado, Caliban é feio e a natureza é uma "imensa selvageria", por outro, Caliban é nobre e
livre e a Natureza é um Éden. Essa divisão na consciência europeia antecede
a dicotomia romântica/clássica. Está enraizada na Alta Magia da
Renascença. A descoberta da América (o Eldorado, a fonte da juventude) a
cristalizou, e sua precipitação aconteceu na forma de esquemas reais de
colonização.
Na escola primária nos ensinam que a primeira tentativa de
colonização em Roanoke fracassou, que os colonizadores desapareceram,
deixando para trás apenas a mensagem críptica: "Fomos para Croatã". Mais
tarde, relatos de "índios de olhos cinzentos" foram descartados como lenda.
De acordo com os livros escolares, o que aconteceu foi que os índios
massacraram os colonos indefesos. No entanto, "Croatã" não era nenhum
Eldorado, era o nome de uma tribo local de índios amigáveis.
Aparentemente, o povoado simplesmente mudou-se do litoral para a região
do Grande Pântano Sombrio e foi absorvido pela tribo. E os índios de olhos
cinzentos eram reais - eles ainda estão lá, e ainda se conhecem por Croatãs.
Então - a primeira colônia do Novo Mundo resolveu renunciar ao
seu contrato com Próspero (Dee/Raleigh/o Império) e se uniu aos Homens
Selvagens como Caliban. Eles deserdaram. Eles se tornaram "índios",
viraram nativos, optaram pelo caos em detrimento dos atrozes sofrimentos
de servir aos plutocratas e intelectuais de Londres. À medida que os Estados Unidos surgiam onde antes havia sido
a "Ilha da Tartaruga", Croatã permanecia embutida em seu inconsciente
coletivo. Além da fronteira, o estado da Natureza (i.e., sem Estado) ainda
prevalecia, e dentro da consciência dos colonizadores a opção pelo estado
selvagem sempre esteve à espreita, a tentação de abandonar a Igreja, o
trabalho no campo, a alfabetização e os impostos - todos os fardos da
civilização - e, de um jeito ou de outro, "ir para Croatã". Ademais, como a
revolução na Inglaterra foi traída, primeiro por Cromwell e depois pela
Restauração, levas de protestantes radicais fugiram ou foram transportados
para o Novo Mundo (que se tornou uma prisão, um lugar de exílio).
Antinomianos8, familistas, quakers patifes, levellers9, diggers10 e ranters11
foram então apresentados à sombra oculta do estado selvagem, e
apressaram-se em abraçá-lo.
Anne Hutchinson e seus amigos foram apenas os mais
conhecidos (ou seja, pertenciam à classe alta) entre os antinomianos - tendo
tido a má sorte de se envolverem nas questões políticas da colônia - mas
uma facção muito mais radical do movimento sem dúvida existiu. Os
incidentes que Hawthorne narra em "The Maypole of Merry Mount" (O
Mastro da Primavera do Monte Alegre) são totalmente históricos:
aparentemente os extremistas haviam decidido renunciar totalmente ao
cristianismo e adotar o paganismo. Se tivessem conseguido êxito em se unir
aos seus aliados indígenas, o resultado poderia ter sido uma religião
sincrética com elementos antinomianos, celtas e algonquinos12, uma espécie
de Santería norte-americana do século XVII.
As seitas puderam prosperar melhor sob as administrações
menos rígidas e mais corruptas do Caribe, onde os interesses dos rivais
europeus tinham deixado muitas ilhas desertas ou mesmo não-reclamadas.
Especialmente as ilhas de Barbados e Jamaica parecem ter sido colonizadas
por um grande número de extremistas, e acredito que influências igualitárias
e ranterianas contribuíram para a "utopia" dos bucaneiros em Tortuga. Neste
ponto, pela primeira vez, graças a Esquemelin, podemos estudar com
alguma profundidade uma bem-sucedida proto-TAZ do Mundo Novo.
Fugindo dos horríveis "benefícios" do imperialismo, como a escravidão, o
servilismo, o racismo e a intolerância, das torturas do recrutamento
compulsório e da morte em vida nas plantações, os bucaneiros adotaram os
costumes dos índios, casaram-se com Caraíbas, aceitaram negros e
espanhóis como seus iguais, rejeitaram toda nacionalidade, elegeram seus
capitães democraticamente e se voltaram para o "estado da Natureza".
Declarando-se "em guerra contra o mundo todo", eles navegaram os mares
saqueando sob contratos mútuos chamados "Artigos", que eram tão
igualitários que cada membro recebia uma parte integral e o capitão
geralmente apenas 1 1/4 ou l 1/2. O uso de açoites e outros tipos de punição
eram proibidos - desentendimentos eram resolvidos por voto ou por duelo
regulamentado.
Simplesmente não é correio rotular os piratas de meros ladrões
de alto-mar ou mesmo de proto-capitalistas, como alguns historiadores tem
feito. De certo modo, eles foram "bandidos sociais", embora a base de suas
comunidades não se constituíssem como sociedades rurais tradicionais e
eram, de fato, "utopias" criadas quase que ex nihilo in terra incógnita,
enclaves da total liberdade ocupando espaços vazios do mapa. Depois da
queda de Tortuga, o ideal dos bucaneiros permaneceu vivo durante toda a
"Idade de Ouro" da pirataria (c. de 1660 a 1720), e resultou em colônias
continentais em Belize, por exemplo, fundadas pelos próprios bucaneiros.
Com a mudança de cenário para Madagascar - uma ilha ainda nãoreclamada
por nenhum poder imperial e governada apenas por uma
miscelânea de reis nativos (chefes), ávidos por aliados piratas -, a utopia
pirata atingiu sua forma mais elevada.
A narrativa de Defoe sobre capitão Mission e a fundação de
Libertatia pode ser, como alguns historiadores proclamam, uma peça
literária criada para fazer propaganda para a teoria radical dos membros do
Whig - mas está inserida em The General History of the Pyrates (A História
Geral dos Piratas), que em grande parte ainda é aceita como verdadeira e
acurada. Além disso, a história do capitão Mission não foi criticada quando
o livro apareceu, e muitos dos antigos marujos de Madagascar ainda
estavam vivos. Eles pareciam ter acreditado nela, sem dúvida porque
haviam experimentado enclaves piratas muito parecidos com a de Libertatia.
Mais uma vez, escravos libertos, nativos e mesmo inimigos tradicionais
como os portugueses eram convidados para se juntar a eles como iguais.
(Libertar navios negreiros era uma de suas prioridades.) A propriedade da
terra era comunitária, os representantes eram eleitos por períodos curtos, os
saques eram repartidos. As doutrinas de liberdade pregadas eram ainda mais
radicais do que aquelas do Common Sense13.
Libertatia esperava durar e Mission morreu em sua defesa. Mas a
maioria das utopias piratas foram criadas para serem temporárias. As
verdadeiras "repúblicas" dos corsários eram seus navios, que navegavam
sob o código dos Artigos. Os enclaves costeiros geralmente não tinham lei
alguma. O último exemplo clássico, Nassau, nas Bahamas, uma estação
balnearia com barracas e tendas devotadas ao vinho, mulheres (e
provavelmente garotos também, a julgar por Sodomy and Piracy - Sodomia
e Pirataria - de Birge), canções (os piratas eram grandes amantes da música
e costumavam contratar bandas por cruzeiros inteiros) e todos os tipos de
excessos, desapareceu da noite para o dia quando a frota britânica apareceu
na baía. Blackbeard e "Calico Jack" Rackham e sua tripulação de mulheres
piratas moveram-se para costas mais selvagens e destinos mais cruéis,
enquanto outros humildemente aceitaram o Perdão e se regeneraram. Mas a
tradição bucaneira perdurou, tanto em Madagascar, onde os filhos mestiços
dos piratas começaram a construir seus próprios reinos, quanto no Caribe,
onde escravos fugidos e grupos mestiços de negros, brancos e índios
conseguiram prosperar nas montanhas e no campo como maroons. A
comunidade maroon da Jamaica ainda retinha um certo grau de autonomia e
muitos dos antigos hábitos persistiam quando Zora Neale Hurston visitou a
região nos anos 20 (veja o livro Tell my Horse - Diga ao meu Cavalo). Os maroons de Suriname ainda praticam o "paganismo" africano.
Através de todo o século XVIII, a América do Norte também
produziu um certo número de "comunidades isoladas tri-raciais" (este termo
que soa clínico foi inventado pelo movimento eugenista, que produziu os
primeiros estudos científicos sobre essas comunidades. Infelizmente, a
"ciência" serviu como uma justificativa para o ódio racial pelos "híbridos" e
pelos pobres, e a "solução para o problema" geralmente era a esterilização
forçada). Esses núcleos invariavelmente eram formados por servos e
escravos fugidos, "criminosos" (isto é, muito pobres), "prostitutas" (isto é,
mulheres brancas que se casaram com não-brancos) e membros das várias
tribos nativas. Em alguns casos, como o dos seminoles e cherokees, a
estrutura tribal tradicional absorvia os recém-chegados; em outros, novas
tribos eram formadas. Dessa forma, nós temos os maroons do Grande
Pântano Sombrio, que persistiram através dos séculos XVIII e XIX,
adotando escravos fugitivos, funcionando como parada no caminho secreto
para a liberdade e servindo como um centro ideológico e religioso para as
rebeliões de escravos. A religião era o vodu, uma mistura de elementos
africanos, nativos e cristãos e, de acordo com o historiador H. Leaming-Bey,
os mais velhos da seita e os líderes dos maroons do Grande Pântano eram
conhecidos como "os Sete Dedos do Alto Resplendor".
Os ramapaughs do norte de Nova Jersey (incorretamente
chamados de "Jackson Whites") apresentam outra genealogia romântica e
arquetípica: escravos libertos dos poltrões holandeses, vários clãs dos índios
de Delaware e algonquinos, as usuais "prostitutas", os "hessianos" (uma
palavra de efeito para denominar os mercenários ingleses perdidos,
legalistas desertores etc.) e bandos locais de bandidos sociais, como o de
Claudius Smith.
Alguns dos grupos, como os mouros de Delaware e os benismaelitas,
que migraram de Kentucky para Ohio em meados do século
XVIII, declaram ter origens afro-islâmicas. Os ismaelitas praticavam a
poligamia, jamais ingeriam bebidas alcoólicas, viviam como menestréis,
casavam-se com índios e adotavam seus costumes, e eram tão devotados ao
nomadismo que construíam suas casas sobre rodas. Sua migração anual
percorria um triângulo que incluía cidades fronteiriças com nomes como
Meca e Medina. No século XIX, alguns desses grupos abraçaram ideais
anarquistas e foram alvo de um programa de extermínio particularmente
perverso concebido pelos eugenistas. Algumas das primeiras leis eugênicas
foram aprovadas em sua "honra". Como tribo, eles "desapareceram" nos
anos 20, mas provavelmente engordaram as fileiras das primeiras seitas
"afro-islâmicas", como o Templo da Ciência Islâmica.
Eu mesmo cresci ouvindo as lendas sobre os "kallikaks" da
região de Pine Barrens em Nova Jersey (e, é claro, as histórias de Lovecraft,
um racista enfurecido que era fascinado por comunidades isoladas). A lenda
acabou por tornar-se parte da memória popular gerada pelas calúnias dos
eugenistas, cuja sede ficava em Vineland, Nova Jersey, e que empreenderam
as suas usuais "reformas" contra a "miscigenação" e a "debilidade mental"
na região de Pine Barrens (incluindo a publicação de fotografias dos
kallikaks, cruel e descaradamente retocadas para fazê-los parecer monstros
degenerados).
As "comunidades isoladas" - ao menos aquelas que mantiveram
sua identidade até o século XX - sistematicamente recusavam-se a ser
absorvidas tanto pela cultura dominante quanto pela "sub-cultura" negra na
qual os sociólogos modernos preferem incluílas. Nos anos 70, inspirados
pela renascença dos índios americanos, alguns grupos - incluindo os mouros
e os ramapaughs - inscreveram-se no Departamento dos Negócios Indígenas
para serem reconhecidos como tribos indígenas. Eles receberam o apoio dos
ativistas, mas o status oficial foi-lhes negado. Se tivessem ganho, afinal,
poderiam ter aberto um perigoso precedente para desertores de todos os
tipos, desde consumidores de peiote a hippies e nacionalistas negros,
arianos, anarquistas e libertários - uma "reserva" para todos! O "projeto
europeu" não pode reconhecer a existência do Homem Selvagem - o caos
verde é ainda uma ameaça muito grande para o sonho imperial de ordem.
Essencialmente, os mouros e os ramapaughs rejeitaram a
explicação histórica ou "diacrônica" de suas origens em favor de uma autoidentidade
"sincrônica" baseada no "mito" de uma adoção indígena. Ou, em
outras palavras, eles se autonomearam " índios". Se todo mundo que
quisesse "ser um índio" pudesse consegui-lo através de um ato de
autonomeação, imagine a retirada em massa para Croatã que aconteceria!
Aquela antiga sombra oculta ainda assombra a área remanescente de nossas
florestas (que, aliás, tem crescido significativamente no nordeste desde os
séculos XVIII e XIX, à medida que vastas extensões de terras produtivas
são abandonadas. Thoreau, em seu leito de morte, sonhou com o retorno de
"...indígenas... florestas...": o retorno dos reprimidos). É claro que os mouros e os ramapaughs possuem razões
concretas para pensar em si mesmos como índios - afinal, têm de fato
ancestrais índios - mas, se analisarmos sua autonomeação tanto em termos
"míticos" quanto em termos históricos, aprenderemos algo de relevância
para nossa busca da TAZ. Em sociedades tribais existe o que alguns
antropólogos chamam de mannenbunden: sociedades totêmicas voltadas a
uma identidade com a "Natureza" através de um ato de transmutação de
formas, de se transformarem no animal-totem (lobisomens, pajés-onça,
homens-leopardo, feiticeiras-gato etc.). No contexto de uma sociedade
colonial (como Taussig aponta em seu Shamanism, Colonialism and the Wild Man - Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem), o poder da
transformação é percebido como algo inerente à cultura nativa como um
todo. Dessa forma, a camada mais reprimida da sociedade adquire um poder
paradoxal através do mito de seu conhecimento oculto, que é temido e
desejado pelo colonizador. É claro que os nativos realmente possuem um
certo conhecimento oculto. Mas em resposta a essa percepção imperial de
sua cultura como uma espécie de "espiritismo selvagem", os nativos
começam a se enxergar neste papel de forma cada vez mais consciente.
Durante o próprio processo de se tornarem marginalizados, a margem
assume uma aura mágica. Antes do homem branco, eles eram simplesmente
tribos formadas por pessoas - agora, eles são "guardiões da natureza",
habitantes do "estado da Natureza". Finalmente, o próprio colonizador é
seduzido por esse "mito". Sempre que um americano deseja largar tudo ou
voltar para a natureza, invariavelmente ele "se torna um índio". Os
democratas radicais de Massachusetts (descendentes espirituais dos
protestantes radicais), que organizaram o Tea Party, e que literalmente
acreditavam que governos podiam ser abolidos (toda a região de Berkshire
declarou-se um "estado da Natureza"!), disfarçaram-se de "moicanos".
Assim, colonizadores que de súbito se encontravam marginalizados por sua
pátria-mãe adotaram a representação de nativos marginalizados, procurando
portanto (num certo sentido) compartilhar de seu poder oculto, de sua
radiância mítica. Dos "homens das montanhas" aos escoteiros-mirins, o
sonho de "se tornar um índio" flui sob uma miríade de expressões da
história, cultura e consciência norte-americana.
O imaginário sexual associado aos grupos "tri-raciais" também
sustenta essa ideia. Os "nativos", é claro, são sempre imorais, mas os
renegados raciais e os desertores devem ser completamente polimorfosperversos.
Os bucaneiros eram sodomitas, os maroons e os homens das
montanhas eram miscigenistas, os kallikaks praticavam a fornicação e o
incesto (o que originava mutações tais como a polidactilia), as crianças
corriam nuas e se masturbavam abertamente etc. etc. O retorno a um "estado
natural" paradoxalmente parece permitir a prática de todo tipo de ato
"Antinatural"; ou pelo menos assim pareceria se fossemos acreditar nos
puritanos e eugenistas. E já que grande parte das pessoas que vivem em
sociedades racistas e moralmente repressoras secretamente desejam
exatamente esses atos licenciosos, elas os projetam sobre os marginalizados,
e assim convencem a si mesmos que permanecem civilizadas e puras. E
realmente algumas comunidades marginalizadas rejeitaram a moralidade
consensual - os piratas certamente o fizeram! - e sem dúvida realizaram
alguns dos desejos reprimidos da civilização. (Você não faria o mesmo?)
Tornar-se "selvagem" é sempre um ato erótico, um ato de desnudamento.
Antes de deixar o assunto dos "tri-raciais isolados", eu gostaria
de relembrar o entusiasmo de Nietzsche pela "mistura das raças".
Impressionado pela beleza e vigor de culturas híbridas, ele enxergou na
miscigenação não só uma solução para o problema da raça, mas também o
princípio para uma nova humanidade, livre dos preconceitos étnicos e
nacionalistas - um precursor do "nômade psíquico", talvez. O sonho de
Nietzsche ainda parece tão remoto agora como o parecia para ele. O
chauvinismo mantém seu domínio. Culturas mestiças permanecem
submersas. Mas as zonas autônomas dos bucaneiros e dos maroons,
ismaelitas e mouros, ramapaughs e kallikaks permanecem, ou suas histórias
permanecem, como indicações do que Nietzsche poderia ter chamado de
"Ânsia de Poder como Desaparecimento". Devemos voltar a este tema.
"FOMOS PARA CROATÃ"
NÃO QUEREMOS DEFINIR a TAZ ou elaborar dogmas sobre
como ela deve ser criada. O nosso argumento é que ela foi criada, será
criada e está sendo criada. Portanto, será mais proveitoso e mais interessante
olharmos para algumas TAZ passadas e presentes, e especular sobre
manifestações futuras. Evocando alguns protótipos podemos vir a ser
capazes de avaliar o escopo potencial deste complexo, e talvez até mesmo
vislumbrar um "arquétipo". Em vez de tentar qualquer tipo de
enciclopedismo, adotaremos uma técnica franco-atiradora, um mosaico de
vislumbres, começando de forma arbitrária com os séculos XVI/XVII e o
estabelecimento do Novo Mundo.
A abertura do "novo" mundo foi concebida desde o principio
como uma operação ocultista. O mago John Dee, consultor espiritual da
rainha Elizabeth I, parece ter inventado o conceito de "imperialismo
mágico" e infectado toda uma geração com ele. Halkyut e Raleigh caíram
sob seu feitiço e Raleigh usou suas conexões na "Escola da Noite" - uma
ordem secreta de pensadores de vanguarda, aristocratas e iniciados - para
incentivar as causas da exploração, colonização e mapeamento. A Tempestade foi uma peça de propaganda para esta nova ideologia, e a
colônia Roanoke7 seu primeiro experimento.
A visão alquímica do Novo Mundo o associou com matéria- prima ou hyle (o nada), o "estado da Natureza", inocência e possibilidade
total ("Virgínia"), um caos ou essencialidade que o iniciado transmutaria em
"ouro", isto é, em perfeição espiritual assim como em abundância material.
Mas essa visão alquímica é, em parte, também, gerada por uma
real fascinação pelo incipiente, uma secreta simpatia por ele, um sentimento
de ternura por sua forma sem forma, que tomou como símbolo para seu foco
o "Índio": o "Homem" em seu estado natural, ainda não corrompido por
nenhum "governo". Caliban, o Homem Selvagem, é instalado como um
vírus dentro da própria máquina do Imperialismo Oculto.
Florestas/animais/seres humanos são investidos desde o início com o poder
mágico do marginal, do desprezado e do proscrito. Se, por um lado, Caliban é feio e a natureza é uma "imensa selvageria", por outro, Caliban é nobre e
livre e a Natureza é um Éden. Essa divisão na consciência europeia antecede
a dicotomia romântica/clássica. Está enraizada na Alta Magia da
Renascença. A descoberta da América (o Eldorado, a fonte da juventude) a
cristalizou, e sua precipitação aconteceu na forma de esquemas reais de
colonização.
Na escola primária nos ensinam que a primeira tentativa de
colonização em Roanoke fracassou, que os colonizadores desapareceram,
deixando para trás apenas a mensagem críptica: "Fomos para Croatã". Mais
tarde, relatos de "índios de olhos cinzentos" foram descartados como lenda.
De acordo com os livros escolares, o que aconteceu foi que os índios
massacraram os colonos indefesos. No entanto, "Croatã" não era nenhum
Eldorado, era o nome de uma tribo local de índios amigáveis.
Aparentemente, o povoado simplesmente mudou-se do litoral para a região
do Grande Pântano Sombrio e foi absorvido pela tribo. E os índios de olhos
cinzentos eram reais - eles ainda estão lá, e ainda se conhecem por Croatãs.
Então - a primeira colônia do Novo Mundo resolveu renunciar ao
seu contrato com Próspero (Dee/Raleigh/o Império) e se uniu aos Homens
Selvagens como Caliban. Eles deserdaram. Eles se tornaram "índios",
viraram nativos, optaram pelo caos em detrimento dos atrozes sofrimentos
de servir aos plutocratas e intelectuais de Londres. À medida que os Estados Unidos surgiam onde antes havia sido
a "Ilha da Tartaruga", Croatã permanecia embutida em seu inconsciente
coletivo. Além da fronteira, o estado da Natureza (i.e., sem Estado) ainda
prevalecia, e dentro da consciência dos colonizadores a opção pelo estado
selvagem sempre esteve à espreita, a tentação de abandonar a Igreja, o
trabalho no campo, a alfabetização e os impostos - todos os fardos da
civilização - e, de um jeito ou de outro, "ir para Croatã". Ademais, como a
revolução na Inglaterra foi traída, primeiro por Cromwell e depois pela
Restauração, levas de protestantes radicais fugiram ou foram transportados
para o Novo Mundo (que se tornou uma prisão, um lugar de exílio).
Antinomianos8, familistas, quakers patifes, levellers9, diggers10 e ranters11
foram então apresentados à sombra oculta do estado selvagem, e
apressaram-se em abraçá-lo.
Anne Hutchinson e seus amigos foram apenas os mais
conhecidos (ou seja, pertenciam à classe alta) entre os antinomianos - tendo
tido a má sorte de se envolverem nas questões políticas da colônia - mas
uma facção muito mais radical do movimento sem dúvida existiu. Os
incidentes que Hawthorne narra em "The Maypole of Merry Mount" (O
Mastro da Primavera do Monte Alegre) são totalmente históricos:
aparentemente os extremistas haviam decidido renunciar totalmente ao
cristianismo e adotar o paganismo. Se tivessem conseguido êxito em se unir
aos seus aliados indígenas, o resultado poderia ter sido uma religião
sincrética com elementos antinomianos, celtas e algonquinos12, uma espécie
de Santería norte-americana do século XVII.
As seitas puderam prosperar melhor sob as administrações
menos rígidas e mais corruptas do Caribe, onde os interesses dos rivais
europeus tinham deixado muitas ilhas desertas ou mesmo não-reclamadas.
Especialmente as ilhas de Barbados e Jamaica parecem ter sido colonizadas
por um grande número de extremistas, e acredito que influências igualitárias
e ranterianas contribuíram para a "utopia" dos bucaneiros em Tortuga. Neste
ponto, pela primeira vez, graças a Esquemelin, podemos estudar com
alguma profundidade uma bem-sucedida proto-TAZ do Mundo Novo.
Fugindo dos horríveis "benefícios" do imperialismo, como a escravidão, o
servilismo, o racismo e a intolerância, das torturas do recrutamento
compulsório e da morte em vida nas plantações, os bucaneiros adotaram os
costumes dos índios, casaram-se com Caraíbas, aceitaram negros e
espanhóis como seus iguais, rejeitaram toda nacionalidade, elegeram seus
capitães democraticamente e se voltaram para o "estado da Natureza".
Declarando-se "em guerra contra o mundo todo", eles navegaram os mares
saqueando sob contratos mútuos chamados "Artigos", que eram tão
igualitários que cada membro recebia uma parte integral e o capitão
geralmente apenas 1 1/4 ou l 1/2. O uso de açoites e outros tipos de punição
eram proibidos - desentendimentos eram resolvidos por voto ou por duelo
regulamentado.
Simplesmente não é correio rotular os piratas de meros ladrões
de alto-mar ou mesmo de proto-capitalistas, como alguns historiadores tem
feito. De certo modo, eles foram "bandidos sociais", embora a base de suas
comunidades não se constituíssem como sociedades rurais tradicionais e
eram, de fato, "utopias" criadas quase que ex nihilo in terra incógnita,
enclaves da total liberdade ocupando espaços vazios do mapa. Depois da
queda de Tortuga, o ideal dos bucaneiros permaneceu vivo durante toda a
"Idade de Ouro" da pirataria (c. de 1660 a 1720), e resultou em colônias
continentais em Belize, por exemplo, fundadas pelos próprios bucaneiros.
Com a mudança de cenário para Madagascar - uma ilha ainda nãoreclamada
por nenhum poder imperial e governada apenas por uma
miscelânea de reis nativos (chefes), ávidos por aliados piratas -, a utopia
pirata atingiu sua forma mais elevada.
A narrativa de Defoe sobre capitão Mission e a fundação de
Libertatia pode ser, como alguns historiadores proclamam, uma peça
literária criada para fazer propaganda para a teoria radical dos membros do
Whig - mas está inserida em The General History of the Pyrates (A História
Geral dos Piratas), que em grande parte ainda é aceita como verdadeira e
acurada. Além disso, a história do capitão Mission não foi criticada quando
o livro apareceu, e muitos dos antigos marujos de Madagascar ainda
estavam vivos. Eles pareciam ter acreditado nela, sem dúvida porque
haviam experimentado enclaves piratas muito parecidos com a de Libertatia.
Mais uma vez, escravos libertos, nativos e mesmo inimigos tradicionais
como os portugueses eram convidados para se juntar a eles como iguais.
(Libertar navios negreiros era uma de suas prioridades.) A propriedade da
terra era comunitária, os representantes eram eleitos por períodos curtos, os
saques eram repartidos. As doutrinas de liberdade pregadas eram ainda mais
radicais do que aquelas do Common Sense13.
Libertatia esperava durar e Mission morreu em sua defesa. Mas a
maioria das utopias piratas foram criadas para serem temporárias. As
verdadeiras "repúblicas" dos corsários eram seus navios, que navegavam
sob o código dos Artigos. Os enclaves costeiros geralmente não tinham lei
alguma. O último exemplo clássico, Nassau, nas Bahamas, uma estação
balnearia com barracas e tendas devotadas ao vinho, mulheres (e
provavelmente garotos também, a julgar por Sodomy and Piracy - Sodomia
e Pirataria - de Birge), canções (os piratas eram grandes amantes da música
e costumavam contratar bandas por cruzeiros inteiros) e todos os tipos de
excessos, desapareceu da noite para o dia quando a frota britânica apareceu
na baía. Blackbeard e "Calico Jack" Rackham e sua tripulação de mulheres
piratas moveram-se para costas mais selvagens e destinos mais cruéis,
enquanto outros humildemente aceitaram o Perdão e se regeneraram. Mas a
tradição bucaneira perdurou, tanto em Madagascar, onde os filhos mestiços
dos piratas começaram a construir seus próprios reinos, quanto no Caribe,
onde escravos fugidos e grupos mestiços de negros, brancos e índios
conseguiram prosperar nas montanhas e no campo como maroons. A
comunidade maroon da Jamaica ainda retinha um certo grau de autonomia e
muitos dos antigos hábitos persistiam quando Zora Neale Hurston visitou a
região nos anos 20 (veja o livro Tell my Horse - Diga ao meu Cavalo). Os maroons de Suriname ainda praticam o "paganismo" africano.
Através de todo o século XVIII, a América do Norte também
produziu um certo número de "comunidades isoladas tri-raciais" (este termo
que soa clínico foi inventado pelo movimento eugenista, que produziu os
primeiros estudos científicos sobre essas comunidades. Infelizmente, a
"ciência" serviu como uma justificativa para o ódio racial pelos "híbridos" e
pelos pobres, e a "solução para o problema" geralmente era a esterilização
forçada). Esses núcleos invariavelmente eram formados por servos e
escravos fugidos, "criminosos" (isto é, muito pobres), "prostitutas" (isto é,
mulheres brancas que se casaram com não-brancos) e membros das várias
tribos nativas. Em alguns casos, como o dos seminoles e cherokees, a
estrutura tribal tradicional absorvia os recém-chegados; em outros, novas
tribos eram formadas. Dessa forma, nós temos os maroons do Grande
Pântano Sombrio, que persistiram através dos séculos XVIII e XIX,
adotando escravos fugitivos, funcionando como parada no caminho secreto
para a liberdade e servindo como um centro ideológico e religioso para as
rebeliões de escravos. A religião era o vodu, uma mistura de elementos
africanos, nativos e cristãos e, de acordo com o historiador H. Leaming-Bey,
os mais velhos da seita e os líderes dos maroons do Grande Pântano eram
conhecidos como "os Sete Dedos do Alto Resplendor".
Os ramapaughs do norte de Nova Jersey (incorretamente
chamados de "Jackson Whites") apresentam outra genealogia romântica e
arquetípica: escravos libertos dos poltrões holandeses, vários clãs dos índios
de Delaware e algonquinos, as usuais "prostitutas", os "hessianos" (uma
palavra de efeito para denominar os mercenários ingleses perdidos,
legalistas desertores etc.) e bandos locais de bandidos sociais, como o de
Claudius Smith.
Alguns dos grupos, como os mouros de Delaware e os benismaelitas,
que migraram de Kentucky para Ohio em meados do século
XVIII, declaram ter origens afro-islâmicas. Os ismaelitas praticavam a
poligamia, jamais ingeriam bebidas alcoólicas, viviam como menestréis,
casavam-se com índios e adotavam seus costumes, e eram tão devotados ao
nomadismo que construíam suas casas sobre rodas. Sua migração anual
percorria um triângulo que incluía cidades fronteiriças com nomes como
Meca e Medina. No século XIX, alguns desses grupos abraçaram ideais
anarquistas e foram alvo de um programa de extermínio particularmente
perverso concebido pelos eugenistas. Algumas das primeiras leis eugênicas
foram aprovadas em sua "honra". Como tribo, eles "desapareceram" nos
anos 20, mas provavelmente engordaram as fileiras das primeiras seitas
"afro-islâmicas", como o Templo da Ciência Islâmica.
Eu mesmo cresci ouvindo as lendas sobre os "kallikaks" da
região de Pine Barrens em Nova Jersey (e, é claro, as histórias de Lovecraft,
um racista enfurecido que era fascinado por comunidades isoladas). A lenda
acabou por tornar-se parte da memória popular gerada pelas calúnias dos
eugenistas, cuja sede ficava em Vineland, Nova Jersey, e que empreenderam
as suas usuais "reformas" contra a "miscigenação" e a "debilidade mental"
na região de Pine Barrens (incluindo a publicação de fotografias dos
kallikaks, cruel e descaradamente retocadas para fazê-los parecer monstros
degenerados).
As "comunidades isoladas" - ao menos aquelas que mantiveram
sua identidade até o século XX - sistematicamente recusavam-se a ser
absorvidas tanto pela cultura dominante quanto pela "sub-cultura" negra na
qual os sociólogos modernos preferem incluílas. Nos anos 70, inspirados
pela renascença dos índios americanos, alguns grupos - incluindo os mouros
e os ramapaughs - inscreveram-se no Departamento dos Negócios Indígenas
para serem reconhecidos como tribos indígenas. Eles receberam o apoio dos
ativistas, mas o status oficial foi-lhes negado. Se tivessem ganho, afinal,
poderiam ter aberto um perigoso precedente para desertores de todos os
tipos, desde consumidores de peiote a hippies e nacionalistas negros,
arianos, anarquistas e libertários - uma "reserva" para todos! O "projeto
europeu" não pode reconhecer a existência do Homem Selvagem - o caos
verde é ainda uma ameaça muito grande para o sonho imperial de ordem.
Essencialmente, os mouros e os ramapaughs rejeitaram a
explicação histórica ou "diacrônica" de suas origens em favor de uma autoidentidade
"sincrônica" baseada no "mito" de uma adoção indígena. Ou, em
outras palavras, eles se autonomearam " índios". Se todo mundo que
quisesse "ser um índio" pudesse consegui-lo através de um ato de
autonomeação, imagine a retirada em massa para Croatã que aconteceria!
Aquela antiga sombra oculta ainda assombra a área remanescente de nossas
florestas (que, aliás, tem crescido significativamente no nordeste desde os
séculos XVIII e XIX, à medida que vastas extensões de terras produtivas
são abandonadas. Thoreau, em seu leito de morte, sonhou com o retorno de
"...indígenas... florestas...": o retorno dos reprimidos). É claro que os mouros e os ramapaughs possuem razões
concretas para pensar em si mesmos como índios - afinal, têm de fato
ancestrais índios - mas, se analisarmos sua autonomeação tanto em termos
"míticos" quanto em termos históricos, aprenderemos algo de relevância
para nossa busca da TAZ. Em sociedades tribais existe o que alguns
antropólogos chamam de mannenbunden: sociedades totêmicas voltadas a
uma identidade com a "Natureza" através de um ato de transmutação de
formas, de se transformarem no animal-totem (lobisomens, pajés-onça,
homens-leopardo, feiticeiras-gato etc.). No contexto de uma sociedade
colonial (como Taussig aponta em seu Shamanism, Colonialism and the Wild Man - Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem), o poder da
transformação é percebido como algo inerente à cultura nativa como um
todo. Dessa forma, a camada mais reprimida da sociedade adquire um poder
paradoxal através do mito de seu conhecimento oculto, que é temido e
desejado pelo colonizador. É claro que os nativos realmente possuem um
certo conhecimento oculto. Mas em resposta a essa percepção imperial de
sua cultura como uma espécie de "espiritismo selvagem", os nativos
começam a se enxergar neste papel de forma cada vez mais consciente.
Durante o próprio processo de se tornarem marginalizados, a margem
assume uma aura mágica. Antes do homem branco, eles eram simplesmente
tribos formadas por pessoas - agora, eles são "guardiões da natureza",
habitantes do "estado da Natureza". Finalmente, o próprio colonizador é
seduzido por esse "mito". Sempre que um americano deseja largar tudo ou
voltar para a natureza, invariavelmente ele "se torna um índio". Os
democratas radicais de Massachusetts (descendentes espirituais dos
protestantes radicais), que organizaram o Tea Party, e que literalmente
acreditavam que governos podiam ser abolidos (toda a região de Berkshire
declarou-se um "estado da Natureza"!), disfarçaram-se de "moicanos".
Assim, colonizadores que de súbito se encontravam marginalizados por sua
pátria-mãe adotaram a representação de nativos marginalizados, procurando
portanto (num certo sentido) compartilhar de seu poder oculto, de sua
radiância mítica. Dos "homens das montanhas" aos escoteiros-mirins, o
sonho de "se tornar um índio" flui sob uma miríade de expressões da
história, cultura e consciência norte-americana.
O imaginário sexual associado aos grupos "tri-raciais" também
sustenta essa ideia. Os "nativos", é claro, são sempre imorais, mas os
renegados raciais e os desertores devem ser completamente polimorfosperversos.
Os bucaneiros eram sodomitas, os maroons e os homens das
montanhas eram miscigenistas, os kallikaks praticavam a fornicação e o
incesto (o que originava mutações tais como a polidactilia), as crianças
corriam nuas e se masturbavam abertamente etc. etc. O retorno a um "estado
natural" paradoxalmente parece permitir a prática de todo tipo de ato
"Antinatural"; ou pelo menos assim pareceria se fossemos acreditar nos
puritanos e eugenistas. E já que grande parte das pessoas que vivem em
sociedades racistas e moralmente repressoras secretamente desejam
exatamente esses atos licenciosos, elas os projetam sobre os marginalizados,
e assim convencem a si mesmos que permanecem civilizadas e puras. E
realmente algumas comunidades marginalizadas rejeitaram a moralidade
consensual - os piratas certamente o fizeram! - e sem dúvida realizaram
alguns dos desejos reprimidos da civilização. (Você não faria o mesmo?)
Tornar-se "selvagem" é sempre um ato erótico, um ato de desnudamento.
Antes de deixar o assunto dos "tri-raciais isolados", eu gostaria
de relembrar o entusiasmo de Nietzsche pela "mistura das raças".
Impressionado pela beleza e vigor de culturas híbridas, ele enxergou na
miscigenação não só uma solução para o problema da raça, mas também o
princípio para uma nova humanidade, livre dos preconceitos étnicos e
nacionalistas - um precursor do "nômade psíquico", talvez. O sonho de
Nietzsche ainda parece tão remoto agora como o parecia para ele. O
chauvinismo mantém seu domínio. Culturas mestiças permanecem
submersas. Mas as zonas autônomas dos bucaneiros e dos maroons,
ismaelitas e mouros, ramapaughs e kallikaks permanecem, ou suas histórias
permanecem, como indicações do que Nietzsche poderia ter chamado de
"Ânsia de Poder como Desaparecimento". Devemos voltar a este tema.
"FOMOS PARA CROATÃ"
NÃO QUEREMOS DEFINIR a TAZ ou elaborar dogmas sobre
como ela deve ser criada. O nosso argumento é que ela foi criada, será
criada e está sendo criada. Portanto, será mais proveitoso e mais interessante
olharmos para algumas TAZ passadas e presentes, e especular sobre
manifestações futuras. Evocando alguns protótipos podemos vir a ser
capazes de avaliar o escopo potencial deste complexo, e talvez até mesmo
vislumbrar um "arquétipo". Em vez de tentar qualquer tipo de
enciclopedismo, adotaremos uma técnica franco-atiradora, um mosaico de
vislumbres, começando de forma arbitrária com os séculos XVI/XVII e o
estabelecimento do Novo Mundo.
A abertura do "novo" mundo foi concebida desde o principio
como uma operação ocultista. O mago John Dee, consultor espiritual da
rainha Elizabeth I, parece ter inventado o conceito de "imperialismo
mágico" e infectado toda uma geração com ele. Halkyut e Raleigh caíram
sob seu feitiço e Raleigh usou suas conexões na "Escola da Noite" - uma
ordem secreta de pensadores de vanguarda, aristocratas e iniciados - para
incentivar as causas da exploração, colonização e mapeamento. A Tempestade foi uma peça de propaganda para esta nova ideologia, e a
colônia Roanoke7 seu primeiro experimento.
A visão alquímica do Novo Mundo o associou com matéria- prima ou hyle (o nada), o "estado da Natureza", inocência e possibilidade
total ("Virgínia"), um caos ou essencialidade que o iniciado transmutaria em
"ouro", isto é, em perfeição espiritual assim como em abundância material.
Mas essa visão alquímica é, em parte, também, gerada por uma
real fascinação pelo incipiente, uma secreta simpatia por ele, um sentimento
de ternura por sua forma sem forma, que tomou como símbolo para seu foco
o "Índio": o "Homem" em seu estado natural, ainda não corrompido por
nenhum "governo". Caliban, o Homem Selvagem, é instalado como um
vírus dentro da própria máquina do Imperialismo Oculto.
Florestas/animais/seres humanos são investidos desde o início com o poder
mágico do marginal, do desprezado e do proscrito. Se, por um lado, Caliban é feio e a natureza é uma "imensa selvageria", por outro, Caliban é nobre e
livre e a Natureza é um Éden. Essa divisão na consciência europeia antecede
a dicotomia romântica/clássica. Está enraizada na Alta Magia da
Renascença. A descoberta da América (o Eldorado, a fonte da juventude) a
cristalizou, e sua precipitação aconteceu na forma de esquemas reais de
colonização.
Na escola primária nos ensinam que a primeira tentativa de
colonização em Roanoke fracassou, que os colonizadores desapareceram,
deixando para trás apenas a mensagem críptica: "Fomos para Croatã". Mais
tarde, relatos de "índios de olhos cinzentos" foram descartados como lenda.
De acordo com os livros escolares, o que aconteceu foi que os índios
massacraram os colonos indefesos. No entanto, "Croatã" não era nenhum
Eldorado, era o nome de uma tribo local de índios amigáveis.
Aparentemente, o povoado simplesmente mudou-se do litoral para a região
do Grande Pântano Sombrio e foi absorvido pela tribo. E os índios de olhos
cinzentos eram reais - eles ainda estão lá, e ainda se conhecem por Croatãs.
Então - a primeira colônia do Novo Mundo resolveu renunciar ao
seu contrato com Próspero (Dee/Raleigh/o Império) e se uniu aos Homens
Selvagens como Caliban. Eles deserdaram. Eles se tornaram "índios",
viraram nativos, optaram pelo caos em detrimento dos atrozes sofrimentos
de servir aos plutocratas e intelectuais de Londres. À medida que os Estados Unidos surgiam onde antes havia sido
a "Ilha da Tartaruga", Croatã permanecia embutida em seu inconsciente
coletivo. Além da fronteira, o estado da Natureza (i.e., sem Estado) ainda
prevalecia, e dentro da consciência dos colonizadores a opção pelo estado
selvagem sempre esteve à espreita, a tentação de abandonar a Igreja, o
trabalho no campo, a alfabetização e os impostos - todos os fardos da
civilização - e, de um jeito ou de outro, "ir para Croatã". Ademais, como a
revolução na Inglaterra foi traída, primeiro por Cromwell e depois pela
Restauração, levas de protestantes radicais fugiram ou foram transportados
para o Novo Mundo (que se tornou uma prisão, um lugar de exílio).
Antinomianos8, familistas, quakers patifes, levellers9, diggers10 e ranters11
foram então apresentados à sombra oculta do estado selvagem, e
apressaram-se em abraçá-lo.
Anne Hutchinson e seus amigos foram apenas os mais
conhecidos (ou seja, pertenciam à classe alta) entre os antinomianos - tendo
tido a má sorte de se envolverem nas questões políticas da colônia - mas
uma facção muito mais radical do movimento sem dúvida existiu. Os
incidentes que Hawthorne narra em "The Maypole of Merry Mount" (O
Mastro da Primavera do Monte Alegre) são totalmente históricos:
aparentemente os extremistas haviam decidido renunciar totalmente ao
cristianismo e adotar o paganismo. Se tivessem conseguido êxito em se unir
aos seus aliados indígenas, o resultado poderia ter sido uma religião
sincrética com elementos antinomianos, celtas e algonquinos12, uma espécie
de Santería norte-americana do século XVII.
As seitas puderam prosperar melhor sob as administrações
menos rígidas e mais corruptas do Caribe, onde os interesses dos rivais
europeus tinham deixado muitas ilhas desertas ou mesmo não-reclamadas.
Especialmente as ilhas de Barbados e Jamaica parecem ter sido colonizadas
por um grande número de extremistas, e acredito que influências igualitárias
e ranterianas contribuíram para a "utopia" dos bucaneiros em Tortuga. Neste
ponto, pela primeira vez, graças a Esquemelin, podemos estudar com
alguma profundidade uma bem-sucedida proto-TAZ do Mundo Novo.
Fugindo dos horríveis "benefícios" do imperialismo, como a escravidão, o
servilismo, o racismo e a intolerância, das torturas do recrutamento
compulsório e da morte em vida nas plantações, os bucaneiros adotaram os
costumes dos índios, casaram-se com Caraíbas, aceitaram negros e
espanhóis como seus iguais, rejeitaram toda nacionalidade, elegeram seus
capitães democraticamente e se voltaram para o "estado da Natureza".
Declarando-se "em guerra contra o mundo todo", eles navegaram os mares
saqueando sob contratos mútuos chamados "Artigos", que eram tão
igualitários que cada membro recebia uma parte integral e o capitão
geralmente apenas 1 1/4 ou l 1/2. O uso de açoites e outros tipos de punição
eram proibidos - desentendimentos eram resolvidos por voto ou por duelo
regulamentado.
Simplesmente não é correio rotular os piratas de meros ladrões
de alto-mar ou mesmo de proto-capitalistas, como alguns historiadores tem
feito. De certo modo, eles foram "bandidos sociais", embora a base de suas
comunidades não se constituíssem como sociedades rurais tradicionais e
eram, de fato, "utopias" criadas quase que ex nihilo in terra incógnita,
enclaves da total liberdade ocupando espaços vazios do mapa. Depois da
queda de Tortuga, o ideal dos bucaneiros permaneceu vivo durante toda a
"Idade de Ouro" da pirataria (c. de 1660 a 1720), e resultou em colônias
continentais em Belize, por exemplo, fundadas pelos próprios bucaneiros.
Com a mudança de cenário para Madagascar - uma ilha ainda nãoreclamada
por nenhum poder imperial e governada apenas por uma
miscelânea de reis nativos (chefes), ávidos por aliados piratas -, a utopia
pirata atingiu sua forma mais elevada.
A narrativa de Defoe sobre capitão Mission e a fundação de
Libertatia pode ser, como alguns historiadores proclamam, uma peça
literária criada para fazer propaganda para a teoria radical dos membros do
Whig - mas está inserida em The General History of the Pyrates (A História
Geral dos Piratas), que em grande parte ainda é aceita como verdadeira e
acurada. Além disso, a história do capitão Mission não foi criticada quando
o livro apareceu, e muitos dos antigos marujos de Madagascar ainda
estavam vivos. Eles pareciam ter acreditado nela, sem dúvida porque
haviam experimentado enclaves piratas muito parecidos com a de Libertatia.
Mais uma vez, escravos libertos, nativos e mesmo inimigos tradicionais
como os portugueses eram convidados para se juntar a eles como iguais.
(Libertar navios negreiros era uma de suas prioridades.) A propriedade da
terra era comunitária, os representantes eram eleitos por períodos curtos, os
saques eram repartidos. As doutrinas de liberdade pregadas eram ainda mais
radicais do que aquelas do Common Sense13.
Libertatia esperava durar e Mission morreu em sua defesa. Mas a
maioria das utopias piratas foram criadas para serem temporárias. As
verdadeiras "repúblicas" dos corsários eram seus navios, que navegavam
sob o código dos Artigos. Os enclaves costeiros geralmente não tinham lei
alguma. O último exemplo clássico, Nassau, nas Bahamas, uma estação
balnearia com barracas e tendas devotadas ao vinho, mulheres (e
provavelmente garotos também, a julgar por Sodomy and Piracy - Sodomia
e Pirataria - de Birge), canções (os piratas eram grandes amantes da música
e costumavam contratar bandas por cruzeiros inteiros) e todos os tipos de
excessos, desapareceu da noite para o dia quando a frota britânica apareceu
na baía. Blackbeard e "Calico Jack" Rackham e sua tripulação de mulheres
piratas moveram-se para costas mais selvagens e destinos mais cruéis,
enquanto outros humildemente aceitaram o Perdão e se regeneraram. Mas a
tradição bucaneira perdurou, tanto em Madagascar, onde os filhos mestiços
dos piratas começaram a construir seus próprios reinos, quanto no Caribe,
onde escravos fugidos e grupos mestiços de negros, brancos e índios
conseguiram prosperar nas montanhas e no campo como maroons. A
comunidade maroon da Jamaica ainda retinha um certo grau de autonomia e
muitos dos antigos hábitos persistiam quando Zora Neale Hurston visitou a
região nos anos 20 (veja o livro Tell my Horse - Diga ao meu Cavalo). Os maroons de Suriname ainda praticam o "paganismo" africano.
Através de todo o século XVIII, a América do Norte também
produziu um certo número de "comunidades isoladas tri-raciais" (este termo
que soa clínico foi inventado pelo movimento eugenista, que produziu os
primeiros estudos científicos sobre essas comunidades. Infelizmente, a
"ciência" serviu como uma justificativa para o ódio racial pelos "híbridos" e
pelos pobres, e a "solução para o problema" geralmente era a esterilização
forçada). Esses núcleos invariavelmente eram formados por servos e
escravos fugidos, "criminosos" (isto é, muito pobres), "prostitutas" (isto é,
mulheres brancas que se casaram com não-brancos) e membros das várias
tribos nativas. Em alguns casos, como o dos seminoles e cherokees, a
estrutura tribal tradicional absorvia os recém-chegados; em outros, novas
tribos eram formadas. Dessa forma, nós temos os maroons do Grande
Pântano Sombrio, que persistiram através dos séculos XVIII e XIX,
adotando escravos fugitivos, funcionando como parada no caminho secreto
para a liberdade e servindo como um centro ideológico e religioso para as
rebeliões de escravos. A religião era o vodu, uma mistura de elementos
africanos, nativos e cristãos e, de acordo com o historiador H. Leaming-Bey,
os mais velhos da seita e os líderes dos maroons do Grande Pântano eram
conhecidos como "os Sete Dedos do Alto Resplendor".
Os ramapaughs do norte de Nova Jersey (incorretamente
chamados de "Jackson Whites") apresentam outra genealogia romântica e
arquetípica: escravos libertos dos poltrões holandeses, vários clãs dos índios
de Delaware e algonquinos, as usuais "prostitutas", os "hessianos" (uma
palavra de efeito para denominar os mercenários ingleses perdidos,
legalistas desertores etc.) e bandos locais de bandidos sociais, como o de
Claudius Smith.
Alguns dos grupos, como os mouros de Delaware e os benismaelitas,
que migraram de Kentucky para Ohio em meados do século
XVIII, declaram ter origens afro-islâmicas. Os ismaelitas praticavam a
poligamia, jamais ingeriam bebidas alcoólicas, viviam como menestréis,
casavam-se com índios e adotavam seus costumes, e eram tão devotados ao
nomadismo que construíam suas casas sobre rodas. Sua migração anual
percorria um triângulo que incluía cidades fronteiriças com nomes como
Meca e Medina. No século XIX, alguns desses grupos abraçaram ideais
anarquistas e foram alvo de um programa de extermínio particularmente
perverso concebido pelos eugenistas. Algumas das primeiras leis eugênicas
foram aprovadas em sua "honra". Como tribo, eles "desapareceram" nos
anos 20, mas provavelmente engordaram as fileiras das primeiras seitas
"afro-islâmicas", como o Templo da Ciência Islâmica.
Eu mesmo cresci ouvindo as lendas sobre os "kallikaks" da
região de Pine Barrens em Nova Jersey (e, é claro, as histórias de Lovecraft,
um racista enfurecido que era fascinado por comunidades isoladas). A lenda
acabou por tornar-se parte da memória popular gerada pelas calúnias dos
eugenistas, cuja sede ficava em Vineland, Nova Jersey, e que empreenderam
as suas usuais "reformas" contra a "miscigenação" e a "debilidade mental"
na região de Pine Barrens (incluindo a publicação de fotografias dos
kallikaks, cruel e descaradamente retocadas para fazê-los parecer monstros
degenerados).
As "comunidades isoladas" - ao menos aquelas que mantiveram
sua identidade até o século XX - sistematicamente recusavam-se a ser
absorvidas tanto pela cultura dominante quanto pela "sub-cultura" negra na
qual os sociólogos modernos preferem incluílas. Nos anos 70, inspirados
pela renascença dos índios americanos, alguns grupos - incluindo os mouros
e os ramapaughs - inscreveram-se no Departamento dos Negócios Indígenas
para serem reconhecidos como tribos indígenas. Eles receberam o apoio dos
ativistas, mas o status oficial foi-lhes negado. Se tivessem ganho, afinal,
poderiam ter aberto um perigoso precedente para desertores de todos os
tipos, desde consumidores de peiote a hippies e nacionalistas negros,
arianos, anarquistas e libertários - uma "reserva" para todos! O "projeto
europeu" não pode reconhecer a existência do Homem Selvagem - o caos
verde é ainda uma ameaça muito grande para o sonho imperial de ordem.
Essencialmente, os mouros e os ramapaughs rejeitaram a
explicação histórica ou "diacrônica" de suas origens em favor de uma autoidentidade
"sincrônica" baseada no "mito" de uma adoção indígena. Ou, em
outras palavras, eles se autonomearam " índios". Se todo mundo que
quisesse "ser um índio" pudesse consegui-lo através de um ato de
autonomeação, imagine a retirada em massa para Croatã que aconteceria!
Aquela antiga sombra oculta ainda assombra a área remanescente de nossas
florestas (que, aliás, tem crescido significativamente no nordeste desde os
séculos XVIII e XIX, à medida que vastas extensões de terras produtivas
são abandonadas. Thoreau, em seu leito de morte, sonhou com o retorno de
"...indígenas... florestas...": o retorno dos reprimidos). É claro que os mouros e os ramapaughs possuem razões
concretas para pensar em si mesmos como índios - afinal, têm de fato
ancestrais índios - mas, se analisarmos sua autonomeação tanto em termos
"míticos" quanto em termos históricos, aprenderemos algo de relevância
para nossa busca da TAZ. Em sociedades tribais existe o que alguns
antropólogos chamam de mannenbunden: sociedades totêmicas voltadas a
uma identidade com a "Natureza" através de um ato de transmutação de
formas, de se transformarem no animal-totem (lobisomens, pajés-onça,
homens-leopardo, feiticeiras-gato etc.). No contexto de uma sociedade
colonial (como Taussig aponta em seu Shamanism, Colonialism and the Wild Man - Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem), o poder da
transformação é percebido como algo inerente à cultura nativa como um
todo. Dessa forma, a camada mais reprimida da sociedade adquire um poder
paradoxal através do mito de seu conhecimento oculto, que é temido e
desejado pelo colonizador. É claro que os nativos realmente possuem um
certo conhecimento oculto. Mas em resposta a essa percepção imperial de
sua cultura como uma espécie de "espiritismo selvagem", os nativos
começam a se enxergar neste papel de forma cada vez mais consciente.
Durante o próprio processo de se tornarem marginalizados, a margem
assume uma aura mágica. Antes do homem branco, eles eram simplesmente
tribos formadas por pessoas - agora, eles são "guardiões da natureza",
habitantes do "estado da Natureza". Finalmente, o próprio colonizador é
seduzido por esse "mito". Sempre que um americano deseja largar tudo ou
voltar para a natureza, invariavelmente ele "se torna um índio". Os
democratas radicais de Massachusetts (descendentes espirituais dos
protestantes radicais), que organizaram o Tea Party, e que literalmente
acreditavam que governos podiam ser abolidos (toda a região de Berkshire
declarou-se um "estado da Natureza"!), disfarçaram-se de "moicanos".
Assim, colonizadores que de súbito se encontravam marginalizados por sua
pátria-mãe adotaram a representação de nativos marginalizados, procurando
portanto (num certo sentido) compartilhar de seu poder oculto, de sua
radiância mítica. Dos "homens das montanhas" aos escoteiros-mirins, o
sonho de "se tornar um índio" flui sob uma miríade de expressões da
história, cultura e consciência norte-americana.
O imaginário sexual associado aos grupos "tri-raciais" também
sustenta essa ideia. Os "nativos", é claro, são sempre imorais, mas os
renegados raciais e os desertores devem ser completamente polimorfosperversos.
Os bucaneiros eram sodomitas, os maroons e os homens das
montanhas eram miscigenistas, os kallikaks praticavam a fornicação e o
incesto (o que originava mutações tais como a polidactilia), as crianças
corriam nuas e se masturbavam abertamente etc. etc. O retorno a um "estado
natural" paradoxalmente parece permitir a prática de todo tipo de ato
"Antinatural"; ou pelo menos assim pareceria se fossemos acreditar nos
puritanos e eugenistas. E já que grande parte das pessoas que vivem em
sociedades racistas e moralmente repressoras secretamente desejam
exatamente esses atos licenciosos, elas os projetam sobre os marginalizados,
e assim convencem a si mesmos que permanecem civilizadas e puras. E
realmente algumas comunidades marginalizadas rejeitaram a moralidade
consensual - os piratas certamente o fizeram! - e sem dúvida realizaram
alguns dos desejos reprimidos da civilização. (Você não faria o mesmo?)
Tornar-se "selvagem" é sempre um ato erótico, um ato de desnudamento.
Antes de deixar o assunto dos "tri-raciais isolados", eu gostaria
de relembrar o entusiasmo de Nietzsche pela "mistura das raças".
Impressionado pela beleza e vigor de culturas híbridas, ele enxergou na
miscigenação não só uma solução para o problema da raça, mas também o
princípio para uma nova humanidade, livre dos preconceitos étnicos e
nacionalistas - um precursor do "nômade psíquico", talvez. O sonho de
Nietzsche ainda parece tão remoto agora como o parecia para ele. O
chauvinismo mantém seu domínio. Culturas mestiças permanecem
submersas. Mas as zonas autônomas dos bucaneiros e dos maroons,
ismaelitas e mouros, ramapaughs e kallikaks permanecem, ou suas histórias
permanecem, como indicações do que Nietzsche poderia ter chamado de
"Ânsia de Poder como Desaparecimento". Devemos voltar a este tema.
A MÚSICA COMO UM PRINCÍPIO ORGANIZACIONAL
POR ORA, NO ENTANTO, voltemos para a história do
anarquismo clássico à luz do conceito da TAZ.
Antes do "fechamento do mapa", uma boa quantidade de energia
anti-autoritária foi gasta em comunas "escapistas" tais como a Modern
Times, os vários falanstérios, e assim por diante. De maneira interessante,
algumas delas não pretendiam durar "para sempre", mas apenas enquanto o
projeto provasse ser eficaz. Para padrões socialistas/utópicos, esses
experimentos foram "fracassos" e, portanto, sabemos muito pouco sobre
eles.
Quando a fuga para além das fronteiras provou-se impossível,
começou a era das comunas revolucionárias urbanas na Europa. As comunas
de Paris, Lion e Marselha não sobreviveram o suficiente para criar qualquer
característica de permanência, e nos perguntamos se elas foram de fato
criadas para serem permanentes. Do nosso ponto de vista, o principal
elemento de fascínio é o espírito das comunas. Durante e depois destes
anos, os anarquistas adquiriram a prática do nomadismo revolucionário,
perambulando de revolta em revolta, procurando manter viva em si mesmos
a intensidade do espírito que eles experimentaram no momento do levante.
Na verdade, certos anarquistas da estirpe stirneriana/nietzscheana
encontraram nessa atividade um fim em si mesmo, um modo de sempre ocupar uma zona autônoma, a zona intermediária que se abre no meio ou no
despertar de uma guerra ou revolução (cf. a "zona" de Pynchon em Arco-Íris da Gravidade). Eles declararam que se alguma revolução socialista tivesse êxito, eles seriam os primeiros a se voltar contra ela. Não tinham nenhuma
intenção de parar antes de alcançar o anarquismo universal. Em 1917, na
Rússia, eles saudaram os sovietes livres com alegria: esta era a sua meta.
Mas assim que os bolcheviques traíram a revolução, os anarcoindividualistas
foram os primeiros a voltar para as trincheiras. Lógico,
depois de Kronstadt14, todos os anarquistas condenaram a "União Soviética"
(uma contradição em termos) e seguiram em busca de novas insurreições.
A Ucrânia de Makhno e a Espanha anarquista foram criadas para
terem duração e, apesar das exigências de guerras contínuas, ambas foram
relativamente bem-sucedidas: não duraram muito tempo, mas eram bem
organizadas e poderiam ter durado se não fosse pela agressão externa que
sofreram. Por isso, dentre os experimentos do período entre-guerras eu me
concentrarei na impulsiva República de Fiume, que é menos conhecida e não foi criada para durar.
Gabriele D’Annunzio, poeta decadente, artista, músico, esteta,
mulherengo, doidivanas aeronauta pioneiro, bruxo negro, gênio e maleducado,
emergiu da Primeira Guerra Mundial como herói e com um
pequeno exército à sua disposição e comando: os arditi. Ávido por aventura,
ele decidiu capturar a cidade de Fiume, na Iugoslávia, e entregá-la para a
Itália. Depois de uma cerimônia necromântica com sua amante num
cemitério de Veneza, ele partiu para a conquista de Fiume, e foi bemsucedido
sem nenhum problema digno de ser mencionado. Porém a Itália
recusou sua oferta generosa. O primeiro-ministro chamou-o de idiota.
Ofendido, D’Annunzio decidiu declarar independência e ver por
quanto tempo conseguiria mante-la. Ele e um de seus amigos anarquistas
escreveram a Constituição, que instituía a música como o principio central do Estado. A Marinha (composta por desertores e sindicalistas anarquistas
dos estaleiros de Milão) se autonomeou Uscochi, em homenagem aos
antigos piratas que em tempos passados viviam nas ilhas da região e
saqueavam os navios venezianos e otomanos. Os modernos uscochi foram
bem-sucedidos em alguns de seus golpes malucos: vários polpudos navios
mercantes italianos de repente deram à República um futuro: dinheiro em
seus cofres! Artistas, boêmios, aventureiros, anarquistas (D’Annunzio se
correspondia com Malatesta), fugitivos e refugiados sem pátria,
homossexuais, dândis militares (o uniforme era preto com a caveira e os
ossos cruzados dos piratas - depois roubado pela SS) e excêntricos
reformadores de toda espécie (incluindo budistas, teosofístas e seguidores
do vedanta) começaram a aparecer em Fiume aos bandos. A festa não
acabava nunca. Toda manhã, do seu balcão, D’Annunzio lia poesia e
manifestos; toda noite havia um concerto, seguido por fogos de artifício.
Nisso se resumia toda a atividade do governo. Dezoito meses mais tarde,
quando o vinho e o dinheiro haviam terminado e a frota italiana finalmente
apareceu e arremessou alguns projéteis contra o Palácio Municipal, ninguém
tinha energia para resistir.
D’Annunzio, como muitos anarquistas italianos, voltou-se mais
tarde para o fascismo - na verdade, o próprio Mussolini (o ex-socialista)
seduziu o poeta para este caminho. Quando o poeta percebeu o seu erro já
era tarde: já estava muito doente e muito velho. Mas o Duce mandou matálo
de qualquer modo - foi empurrado de um balcão - e o transformou num
"mártir". Quanto a Fiume, embora não tenha a seriedade de uma Ucrânia ou
Barcelona liberadas, provavelmente pôde nos ensinar mais sobre certos
aspectos de nossa busca. Ela foi, de certo modo, a última das utopias piratas
(ou o único exemplo moderno), e também, talvez, algo muito próximo da
primeira TAZ moderna.
Acredito que se compararmos Fiume com a Paris revolucionária
de 1968 (e também com as insurreições urbanas da Itália dos anos 70),
assim como com as comunas contraculturais americanas e suas influências
anarco-New Left, poderíamos notar certas similaridades, tais como: a
importância da teoria estética (cf. os situacionistas) e o que poderia ser
chamado de "economia pirata", viver bem, do excedente da super-produção
social - e até mesmo a popularidade dos uniformes militares coloridos; o
conceito de música como transformação social revolucionária; e, finalmente,
um certo ar de impermanência que compartilham, de estarem prontos para
seguir em frente, mudarem de forma, mudarem-se para outras universidades,
topos de montanhas, guetos, fábricas, "aparelhos", fazendas abandonadas,
ou até mesmo para outros planos da realidade. Ninguém mais tentava impor
uma ditadura revolucionária, seja em Fiume, Paris ou Milibrook. Ou o
mundo mudaria, ou não. Enquanto isso, continue na estrada e viva intensamente.
O soviete de Munique (ou a "República do Conselho") de 1919
apresentava certas características de TAZ, embora - como muitas revoluções – suas metas declaradas não eram exatamente "temporárias". A participação
de Gustav Landauer como ministro da Cultura, junto com Silvio Gesell
como ministro da Economia, e outros militantes contrários ao autoritarismo
e socialistas extremamente libertários, como os poetas/dramaturgos Erich
Mühsam e Ernst Toller e Ret Marut (o novelista B. Traven) emprestou ao
soviete um sabor distintamente anarquista. Landauer, que passou anos de
isolamento trabalhando em sua grande síntese de Nietzsche, Proudhon,
Kropotkin, Stirner, Meister Eckhardt, os místicos radicais e os românticos
filósofos populares, sabia desde o começo que o soviete estava condenado, e
esperava apenas que durasse o suficiente para ser compreendido. Kurt
Eisner, o martirizado fundador do soviete, acreditava literalmente que os
poetas e a poesia deveriam formar a base da revolução. Foram feitos planos
para reservar uma grande parte da Bavária para um experimento em
comunidade e com economia anarco-socialista. Landauer redigiu propostas
para um sistema de Escola Livre e um Teatro do Povo. O apoio que o
soviete recebia era mais ou menos restrito às classes trabalhadoras mais
pobres, às vizinhanças boêmias de Munique e aos grupos como os
Wandervogel (o movimento jovem neo-romântico), os judeus radicais
(como Buber) e os expressionistas e outros marginais. Assim, os
historiadores o menosprezam denominando-o "República dos Cafés" e
subestimam sua significância quando o comparam com a participação
marxista e espartaquista nas revoluções da Alemanha do pós-guerra.
Estrategicamente vencido pelos comunistas e assassinado por soldados
influenciados pela ocultista e fascista Sociedade Thule, Landauer merece ser
lembrado como um santo. No entanto, até mesmo os anarquistas hoje em dia
tendem a não compreendê-lo e a condená-lo por "se vender" a um "governo
socialista". Se o soviete tivesse durado pelo menos um ano, nós agora
choraríamos diante da mera menção de sua beleza, mas antes mesmo que as
primeiras flores daquela primavera se murchassem, o Geist e o espírito da
poesia já estavam esmagados, e assim nós o esquecemos. Imagine o que
teria sido respirar o ar de uma cidade na qual o ministro da Cultura tivesse
acabado de declarar que as crianças na escola logo estariam memorizando
poemas de Wait Whitman. Ah, o que eu daria por uma máquina do tempo...
A ÂNSIA DE PODER COMO DESAPARECIMENTO
FOUCAULT, BAUDRILLARD, ET AL. têm discutido à exaustão vários
modos de "desaparecimento". Aqui eu gostaria de sugerir que a TAZ é, em
certo sentido, uma tática de desaparecimento.
Quando os teóricos discursam sobre o desaparecimento do
social, eles se referem, em parte, à impossibilidade da "Revolução Social", e
em parte à impossibilidade do "Estado" - o abismo do poder, o fim do
discurso do poder. Neste caso, a questão anarquista deveria ser: Por que se importar em enfrentar um "poder" que perdeu todo o sentido e se tornou
pura Simulação? Tais confrontos resultarão apenas em perigosos e terríveis
espasmos de violência por parte dos cretinos cheios de merda na cabeça que
herdaram as chaves de todos os arsenais e prisões. (Talvez isso seja uma
grotesca interpretação americana de uma sublime e sutil teoria francogermânica.
Se for, tudo bem: quem foi que disse que a compreensão era
necessária para se usar uma ideia?)
A partir da minha interpretação, o desaparecimento parece ser
uma opção radical bastante lógica para o nosso tempo, de forma alguma um
desastre ou uma declaração de morte do projeto radical. Ao contrário da
interpretação niilista e mórbida da teoria, a minha pretende miná-la em
busca de estratégias úteis para a contínua "revolução de todo dia": a luta que
não pode cessar mesmo com o fracasso final da revolução política ou social,
porque nada, exceto o fim do mundo, pode trazer um Fim para a vida
cotidiana, ou para as nossas aspirações pelas coisas boas, pelo Maravilhoso.
E, como disse Nietzsche, se o mundo pudesse chegar a um fim, logicamente
já o teria feito, e se não o fez é porque não pode. E assim como disse um dos
sufis, não importa quantas taças do vinho proibido nós bebamos,
carregaremos essa sede violenta até a eternidade.
Zerzan e Black, independentemente um do outro, notaram
"elementos de recusa" (para usar um termo de Zerzan) que, de alguma
forma, talvez possam ser percebidos como sintomáticos de uma cultura
radical de desaparecimento, parcialmente inconsciente e parcialmente
consciente, que influencia mais pessoas do que qualquer idéia anarquista ou
de esquerda. Esses gestos são feitos contra instituições, e nesse sentido são
"negativos" - mas cada gesto negativo também sugere uma tática "positiva"
para substituir, em vez de simplesmente refutar, a instituição desprezada.
Por exemplo, o gesto negativo contra o ensino é o "analfabetismo
voluntário". Como eu não compartilho da adoração que os liberais sentem
pela alfabetização como uma forma de melhoria social, não posso concordar
com os suspiros de desalento ouvidos por toda parte por causa desse
fenômeno: simpatizo com as crianças que se recusam a ler livros e todo o
lixo contido neles. Porém existem alternativas positivas que fazem uso da
mesma energia de desaparecimento. A educação oferecida em casa e o
aprendizado de um ofício, tanto quanto a vadiagem, resultam na ausência da
prisão escolar. Hacking é outra forma de "educação" com certas
características de "invisibilidade".
Um gesto negativo em grande escala contra a política consiste
simplesmente em não votar. A "apatia" (ou seja, um saudável sentimento de
tédio para com o Espetáculo desgastado) mantém mais da metade da nação
longe das eleições. O anarquismo nunca conseguiu tanto! (Nem o
anarquismo teve qualquer coisa a ver com o fracasso do último censo.)
Novamente, existem paralelos positivos: a formação de redes de conexões,
como uma alternativa para a política, é praticada em muitos níveis da
sociedade, e organizações não-hierárquicas têm conseguido bastante
popularidade mesmo fora do movimento anarquista, simplesmente porque
essas redes funcionam. (ACT UP e Earth First! são dois exemplos. Os
Alcoólicos Anônimos, estranhamente, é outro.)
A recusa do Trabalho pode tomar a forma de vadiagem,
embriaguez em serviço, sabotagem e pura falta de atenção, mas também
pode originar novos modos de rebelião: mais empregos de autônomos,
maior participação da economia "informal" e lavoro nero, fraudes no
sistema previdenciário e outras opções criminosas, cultivo de maconha etc. -
atividades mais ou menos invisíveis se comparadas com as táticas de
confronto tradicionais da esquerda, tal como a greve geral.
Recusa da Igreja? Bem, o "gesto negativo" nesse caso
provavelmente consiste em... assistir televisão. Mas as alternativas positivas
incluem todo tipo de formas não-autoritárias de espiritualidade, desde o
cristianismo "sem igreja" até o neo-paganismo. As "religiões livres", como
eu gosto de chamá-las - pequenas, autogeradas, com cultos meio sérios/meio
divertidos influenciados por correntes como o discordismo e o taoísmo
anárquico - estão sendo fundadas por toda a América marginal e oferecem
um crescente "quarto caminho" longe das igrejas dominantes, dos fanáticos
televangelistas e do consumismo insípido do New Age. Podemos dizer
também que a principal recusa da ortodoxia consiste na construção de
"moralidades privadas", no sentido dado por Nietzsche: a espiritualidade dos
"espíritos livres".
A recusa negativa do Lar é ser sem teto, o que muitos, não
querendo ser forçados ao nomadismo, consideram uma forma de
vitimização. Mas, "não ter teto" pode, num certo sentido, ser uma virtude,
uma aventura - pelo menos é isso o que parece ao enorme movimento
internacional dos posseiros urbanos, nossos andarilhos modernos.
A recusa negativa da Família obviamente é o divórcio, ou algum
outro sintoma de "rompimento". A alternativa positiva surge com a
percepção de que a vida pode ser mais feliz sem a família nuclear, e em
consequência disso uma centena de flores desabrocham - desde pais
solteiros a casamentos em grupo e grupos de afinidade erótica. O "projeto
europeu" trava uma grande batalha reacionária a favor da "família" - a
miséria edipiana se esconde no coração do Controle. Existem alternativas,
mas elas devem permanecer ocultas, especialmente depois da guerra contra
o sexo nos anos 80 e 90.
O que é a recusa da Arte? O "gesto negativo" não é encontrado
no tolo niilismo de uma "greve de arte", ou na desmoralização de algumas
pinturas famosas, mas sim no tédio quase universal que se abate sobre a
maioria das pessoas na simples menção da palavra "arte". Mas qual seria o
"gesto positivo"? Seria possível imaginar uma estética que não se comprometa, que se remova da História e mesmo do Mercado? Ou que ao
menos tenda a fazer isso? Que queira substituir a representação pela presença? Como a presença pode se fazer perceber mesmo na (ou através
da) representação?
O "caos linguístico" aspira por uma presença que desaparece de
forma progressiva de todas as estruturações de linguagem e sistemas de
significação. Uma presença elusiva, evanescente, latif ("sutil", um termo
usado pela alquimia sufi): o Estranho Atrator ao redor do qual mneme
advém, caoticamente formando novas e espontâneas ordens. Nesste ponto
encontramos a estética da fronteira entre o caos e a ordem, a margem, a área
de "catástrofe", onde o desmoronamento do sistema pode significar
iluminação. (Nota: para uma explicação do que é "Caos Linguístico", leia o
Apêndice A, e então por favor releia este parágrafo.)
Em termos situacionistas, desaparecimento do artista É "a
supressão e a realização da arte". Mas de onde nós desaparecemos? E algum
dia seremos vistos ou ouvirão falar de nós outra vez? Iremos para Croatã:
qual é o nosso destino? Toda a nossa arte consiste em uma mensagem de
adeus para a história - "Fomos para Croatã" - mas onde é isso, e o que faremos lá?
Em primeiro lugar: não estamos nos referindo a um
desaparecimento literal do mundo e do futuro: nenhuma fuga para o
passado, para uma "sociedade original de lazer" paleolítica; nenhuma utopia
eterna, nenhum esconderijo na montanha, nenhuma ilha; e, também,
nenhuma utopia pós-revolucionária - provavelmente nenhuma revolução! - e
também nenhuma estação espacial anarquista. Nem aceitamos uma
"desaparição baudriliardiana" no silêncio de uma ironia hiper-conformista.
Não pretendo provocar discussões com os Rimbauds que fogem da Arte
para qualquer Abissínia que logram encontrar. Mas não podemos construir
uma estética, nem mesmo uma estética do desaparecimento, com a simples
ação de nunca mais voltar. Ao dizer que não fazemos parte da vanguarda e
que não há vanguarda, nós escrevemos nosso "Fomos para Croatã". E então
a questão passa a ser: como conceber "a vida cotidiana" em Croatã?
Especialmente se não podemos dizer que Croatã existe no Tempo (Idade da
Pedra ou Pós-Revolução) ou no Espaço, seja na forma de uma utopia ou em
algum vilarejo esquecido no meio-oeste ou na Abissínia. Onde e quando
existe o mundo da criatividade não-mediada? Se ele pode existir, ele existe,
mas talvez apenas como algum tipo de realidade paralela que até agora não
pudemos perceber. Onde poderíamos encontrar as sementes - ervas daninhas
brotando entre as rachaduras das nossas calçadas - desse outro mundo para
nosso mundo? As pistas, a direção correia? Um dedo apontando para a lua?
Acredito, ou ao menos gostaria de propor, que a única solução
para a "supressão e realização" da arte está na emergência da TAZ. Rejeito
veementemente a crítica que diz que a própria TAZ não é "nada além" de
uma obra de arte, muito embora ela possa vestir alguns de seus enfeites. Eu
sugiro que a TAZ é o único "lugar" e "tempo" possível para a arte acontecer
pelo mero prazer do jogo criativo, e como uma contribuição real para as
forças que permitem que a TAZ se forme e se manifeste.
A arte no Mundo da Arte tornou-se uma mercadoria. Porém,
ainda mais complexa é a questão da representação em si, e a recusa de toda
mediação. Na TAZ, arte como uma mercadoria será simplesmente
impossível. Ao contrário, a arte será uma condição de vida. A mediação é
difícil de ser superada, mas a remoção de todas as barreiras entre artistas e
"usuários" da arte tenderá a uma condição na qual (como A.K.
Coomaraswamy escreveu) "o artista não é um tipo especial de pessoa, mas
toda pessoa é um tipo especial de artista".
Em suma: o desaparecimento não é necessariamente uma
"catástrofe", exceto no sentido matemático de "uma repentina mudança
topológica". Todos os gestos positivos aqui esboçados parecem envolver
vários graus de invisibilidade em vez da confrontação revolucionária
tradicional. A New Left nunca acreditou realmente em sua própria
existência até que viu seu nome no jornal. A Nova Autonomia, por sua vez,
ou conseguirá infiltrar-se na mídia e "subvertê-la" desde dentro, ou nunca
será "vista". A TAZ não existe apenas além do Controle, mas também além
da definição, além do olhar e da nomenclatura como atos de escravização,
além da possibilidade de compreensão do Estado, além da capacidade
perceptiva do Estado.
CAMINHOS DE RATO NA BABILÔNIA DA INFORMAÇÃO
A TAZ COMO UMA TÁTICA radical consciente emergirá sob
certas condições:
l. Liberação psicológica. Isto é, nós devemos perceber (tornar
reais) os momentos e espaços nos quais a liberdade não é apenas possível,
mas existente. Devemos saber de que maneiras somos de fato oprimidos, e
também de que maneiras nos auto-reprimimos ou estamos presos em
fantasias onde ideias nos oprimem. O TRABALHO, por exemplo, é uma
fonte muito mais real de sofrimento para a maioria de nós do que a política
legislativa. A alienação é muito mais perigosa para nós do que as velhas
ideologias desdentadas e moribundas. O vício mental em "ideais" - que na
realidade tornaram-se meras projeções do nosso ressentimento e do nosso
complexo de vítima - nunca levará nosso projeto adiante. A TAZ não
defende uma utopia social feita de castelos nas nuvens que diz que devemos
sacrificar nossas vidas para que os filhos de nossos filhos possam respirar
um pouco de ar livre. A TAZ deve ser o cenário da nossa autonomia
presente, mas só pode existir seja nos considerarmos seres livres.
2. A contra-net deve se expandir. Atualmente, ela representa
mais abstração do que realidade. Zines e BBS trocam informações, o que é
parte do fundamento necessário para a TAZ, mas pouco dessas informações
lidam com os bens concretos e os serviços necessários para a vida
autônoma. Não vivemos no ciberespaço; sonhar que o fazemos é perder-se
na cibergnose, na falsa transcendência do corpo. A TAZ é um lugar físico,
no qual estamos ou não estamos. Todos os sentidos estão, necessariamente,
presentes. De certa maneira, a web é um novo sentido, mas que deve ser adicionado aos outros; e os outros não podem ser subtraídos da web, como
em uma terrível paródia do transe místico. Sem a web, a completa realização
do complexo da TAZ não será possível. Mas a web não é um fim em si
mesma. É uma arma.
3. O aparato de controle - o "Estado" - deve (ou pelo menos
assim devemos pressupor) continuar a desfazer-se e petrificar-se
simultaneamente, deve prosseguir em seu curso atual, onde a rigidez
histérica cada vez mais mascara um vazio, um abismo de poder. Como o
poder "desaparece", nossa ânsia de poder deve ser o desaparecimento.
Já lidamos com a questão que discute se a TAZ pode ou não
pode ser considerada "meramente" uma obra de arte. Mas as pessoas vão
querer saber também se a TAZ é mais do que um pobre caminho de rato no
meio de uma Babilônia da informação, talvez um labirinto de túneis, cada
vez mais bem conectados entre si, porém voltados unicamente ao beco-semsaída
econômico do parasitismo pirata? Responderei que prefiro ser um rato
num buraco de parede do que um rato na gaiola, mas insisto em dizer que a
TAZ transcende essas categorias.
Um mundo onde a TAZ consiga deitar raízes pode se assemelhar
ao mundo imaginado por "P.M" em sua novela fantástica bolo’bolo. Talvez
a TAZ seja um "proto-bolo". Já que a TAZ existe agora, ela significa muito
mais do que uma mundanalidade negativa ou um escapismo contracultural.
Mencionamos o aspecto festivo do momento descontrolado, e que se
concentra numa espontânea, ainda que breve, auto-organização. Ele é
"epifânico": uma experiência de pico, tanto em nível social quanto
individual.
A liberação é percebida durante o esforço: essa é a essência da
"auto-superação" nietzscheana. Essa tese pode também tomar como símbolo
o andarilho de Nietzsche. Ele é o precursor do vagar a esmo, no sentido
dado pelo situacionismo para dérive e da definição de Lyotard para driftwork. Podemos antever uma geografia completamente nova, um tipo de
mapa de peregrinação no qual os lugares sagrados são substituídos por
experiências de pico e TAZ: uma ciência real de psicotopografia, para ser
chamada talvez de "geo-autonomia" ou "anarcomancia".
A TAZ pressupõe um certo tipo de ferocidade, uma evolução da
domesticalidade para a selvageria, um "retorno", e ao mesmo tempo um
passo adiante. Ela também demanda uma "ioga" do caos, um projeto de
ordens "mais elevadas" (de consciência ou, simples-mente, de vida) das
quais uma pessoa se aproxima "surfando a crista da onda do caos", do
dinamismo complexo. A TAZ é uma arte de viver em contínua elevação,
selvagem, mas gentil - um sedutor, não um estuprador, mais um
contrabandista do que um pirata sanguinário, um dançarino e não um
escatológico.
Vamos admitir que temos frequentado festas onde, por uma
breve noite, realizamos um império inteiro de desejos gratifícantes. Não
devemos confessar que a política daquela noite tem mais realidade e força
para nós do que, digamos, todo o governo dos Estados Unidos? Algumas
das "festas" que mencionamos duraram dois ou três anos. Isto é algo que
vale a pena imaginar, para o qual vale a pena lutar? Estudemos
invisibilidade, conexões na web, nomadismo psíquico, e quem sabe o que
poderemos atingir?
Equinócio de Primavera, 1990
Monday, December 11, 2006
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