Monday, December 11, 2006

TAZ - ZONA AUTÔNOMA TEMPORÁRIA

Tradução: Patricia Decia & Renato Resende

"...desta vez, no entanto, eu venho como o vitorioso Dionísio, que transformará o mundo numa festa... Não que eu tenha muito tempo..."
Nietzsche (em sua última carta "insana" a Cosima Wagner)

UTOPIAS PIRATAS

OS PIRATAS E CORSÁRIOS do século XVIII montaram uma
"rede de informações" que se estendia sobre o globo. Mesmo sendo
primitiva e voltada basicamente para negócios cruéis, a rede funcionava de
forma admirável. Era formada por ilhas, esconderijos remotos onde os
navios podiam ser abastecidos com água e comida, e os resultados das
pilhagens eram trocados por artigos de luxo e de necessidade. Algumas
dessas ilhas hospedavam "comunidades intencionais", mini-sociedades que
conscientemente viviam fora da lei e estavam determinadas a continuar
assim, ainda que por uma temporada curta, mas alegre.
Há alguns anos, vasculhei uma grande quantidade de fontes
secundárias sobre pirataria esperando encontrar algum estudo sobre esses
enclaves - mas parecia que nenhum historiador ainda os havia considerado
merecedores de análise. (William Burroughs mencionou o assunto, assim
como o anarquista britânico Larry Law - mas nenhuma pesquisa sistemática
foi levada adiante.) Fui então em busca das fontes primárias e construí
minha própria teoria, da qual discutiremos alguns aspectos neste ensaio. Eu
chamei esses assentamentos de Utopias Piratas1.
Recentemente, Bruce Sterling, um dos principais expoentes da
ficção cientifica cyberpunk, publicou um romance ambientado num futuro
próximo e tendo como base o pressuposto de que a decadência dos sistemas
políticos vai gerar uma proliferação de experiências comunitárias
descentralizadas: corporações gigantescas mantidas por seus funcionários,
enclaves independentes dedicados à "pirataria de dados", enclaves verdes e
social-democratas, enclaves de Trabalho-Zero, zonas anarquistas liberadas
etc. A economia de informação que sustenta esta diversidade é chamada de
Rede. Os enclaves (e o título do livro) são Ilhas na Rede.
Os Assassins2 medievais fundaram um "Estado" que consistia de
uma rede de remotos castelos em vales montanhosos, separados entre si por
milhares de quilômetros, estrategicamente invulneráveis a qualquer invasão,
conectados por um fluxo de informações conduzidas por agentes secretos,
em guerra com todos os governos, e dedicado apenas ao saber. A tecnologia
moderna, culminando no satélite espião, reduz esse tipo de autonomia a um
sonho romântico. Chega de ilhas piratas! No futuro, essa mesma tecnologia
- livre de todo controle político - pode tornar possível um mundo inteiro de zonas autônomas. Mas, por enquanto, o conceito continua sendo apenas
ficção científica - pura especulação.
Estamos nós, que vivemos no presente, condenados a nunca
experimentar a autonomia, nunca pisarmos, nem que seja por um momento
sequer, num pedaço de terra governado apenas pela liberdade? Estamos
reduzidos a sentir nostalgia pelo passado, ou pelo futuro? Devemos esperar
até que o mundo inteiro esteja livre do controle político para que pelo menos
um de nós possa afirmar que sabe o que é ser livre? Tanto a lógica quanto a
emoção condenam tal suposição. A razão diz que o indivíduo não pode lutar
por aquilo que não conhece. E o coração revolta-se diante de um universo
tão cruel a ponto de cometer tais injustiças justamente com a nossa, dentre
todas as gerações da humanidade.
Dizer "só serei livre quando todos os seres humanos (ou todas as
criaturas sensíveis) forem livres", é simplesmente enfurnar-se numa espécie
de estupor de nirvana, abdicar da nossa própria humanidade, definirmo-nos
como fracassados.
Acredito que, dando consequência ao que aprendemos com
histórias sobre "ilhas na rede", tanto do passado quanto do futuro, possamos
coletar evidências suficientes para sugerir que um certo tipo de "enclave
livre" não é apenas possível nos dias de hoje, mas é também real. Toda
minha pesquisa e minhas especulações cristalizaram-se em torno do
conceito de ZONA AUTÔNOMA TEMPORÁRIA (daqui por diante
abreviada por TAZ). Apesar de sua força sintetizadora para o meu próprio
pensamento, não pretendo, no entanto, que a TAZ seja percebida como algo
mais do que um ensaio ("uma tentativa"), uma sugestão, quase que uma
fantasia poética. Apesar do ocasional excesso de entusiasmo da minha
linguagem, não estou tentando construir dogmas políticos. Na verdade,
deliberadamente procurei não definir o que é a TAZ - circundo o assunto,
lançando alguns fachos exploratórios. No final, a TAZ é quase autoexplicativa.
Se o termo entrasse em uso seria compreendido sem
dificuldades... compreendido em ação.

ESPERANDO PELA REVOLUÇÃO

COMO É QUE O MUNDO "virado-de-cabeça-para-baixo" sempre acaba se endireitando? Por quê, como estações no Inferno, após a revolução sempre
vem uma reação? Levante e insurreição são palavras usadas pelos historiadores para
caracterizar revoluções que fracassaram - movimentos que não chegaram a
terminar seu ciclo, a trajetória padrão: revolução, reação, traição, a fundação
de um Estado mais forte e ainda mais opressivo -, a volta completa, o eterno
retorno da história, uma e outra vez mais, até o ápice: botas marchando
eternamente sobre o rosto da humanidade.
Ao falhar em completar esta trajetória, o levante sugere a
possibilidade de um movimento fora e além da espiral hegeliana do
"progresso", que secretamente não passa de um ciclo vicioso. Surgo:
levante, revolta. Insurgo: rebelar-se, levantar-se. Uma ação de
independência. Um adeus a essa miserável paródia da roda kármica,
histórica futilidade revolucionária. O slogan "Revolução!" transformou-se
de sinal de alerta em toxina, uma maligna e pseudo-gnóstica armadilha-dodestino,
um pesadelo no qual, não importa o quanto lutamos, nunca nos
livramos do maligno ciclo infinito que incuba o Estado, um Estado após o
outro, cada "paraíso" governado por um anjo ainda mais cruel.
Se a História É "Tempo", como declara ser, então um levante é
um momento que surge acima e além do Tempo, viola a "lei" da História. Se
o Estado É História, como declara ser, então o levante é o momento
proibido, uma imperdoável negação da dialética como dançar sobre um
poste e escapar por uma fresta, uma manobra xamanística realizada num
"ângulo impossível" em relação ao universo.
A História diz que uma Revolução conquista "permanência", ou
pelo menos alguma duração, enquanto o levante é "temporário". Nesse
sentido, um levante é uma "experiência de pico" se comparada ao padrão
"normal" de consciência e experiência. Como os festivais, os levantes não
podem acontecer todos os dias - ou não seriam "extraordinários". Mas tais
momentos de intensidade moldam e dão sentido a toda uma vida. O xamã
retorna - uma pessoa não pode Ficar no telhado para sempre - mas algo
mudou, trocas e integrações ocorreram - foi feita uma diferença.
Poderia se dizer que essa é uma postura de desespero. O que foi
feito do sonho anarquista, do fim do Estado, da comuna, da zona autônoma
com duração, da sociedade livre, da cultura livre? Devemos abandonar esta
esperança em troca de um acte gratuit existencialista? A ideia não é mudar a
consciência, mas mudar o mundo.
Aceitaria isso como uma crítica justa. No entanto, daria duas
respostas. Primeiro, a revolução até hoje não nos levou à concretização
desse sonho. A visão ganha vida no momento do levante - mas assim que a
"Revolução" triunfa e o Estado retorna, o sonho e o ideal já estão traídos.
Não deixo de ter esperança, nem deixo de ansiar por mudanças - mas
desconfio da palavra revolução. Em segundo lugar, mesmo se substituirmos
a abordagem revolucionária pelo conceito de levante transformando-se espontaneamente numa cultura anarquista, a nossa situação histórica
específica não é propícia para tarefa tão vasta. Absolutamente nada, além de
um martírio inútil, poderia resultar de um confronto direto com o Estado
terminal, esta megacorporação/Estado de informações, o império do
Espetáculo e da Simulação. Todos os seus revólveres estão apontados para
nós. Por outro lado, com nosso armamento miserável, não temos em que
atirar, a não ser numa histerese, num vazio rígido, num fantasma capaz de
transformar todo lampejo num ectoplasma de informação, uma sociedade de
capitulação regida pela imagem do policial e pelo olho absorvente da tela de
TV.
Em resumo, não queremos dizer que a TAZ é um fim em si
mesmo, substituindo todas as outras formas de organização, táticas e
objetivos. Nós a recomendamos porque ela pode fornecer a qualidade do
enlevamento associado ao levante sem necessariamente levar à violência e
ao martírio. A TAZ é uma espécie de rebelião que não confronta o Estado
diretamente, uma operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de
tempo, de imaginação) e se dissolve para se re-fazer em outro lugar e outro
momento, antes que o Estado possa esmagá-la. Uma vez que o Estado se
preocupa primordialmente com a Simulação, e não com a substância, a TAZ
pode, em relativa paz e por um bom tempo, "ocupar" clandestinamente essas áreas e realizar seus propósitos festivos. Talvez algumas pequenas TAZs
tenham durado por gerações - como alguns enclaves rurais - porque
passaram desapercebidas, porque nunca se relacionaram com o Espetáculo,
porque nunca emergiram para fora daquela vida real que é invisível para os
agentes da Simulação.
A Babilônia toma suas abstrações como realidades. É
precisamente dentro dessa margem de erro que a TAZ surge. Iniciar a TAZ
pode envolver várias táticas de violência e defesa, mas seu grande trunfo
está em sua invisibilidade - o Estado não pode reconhecê-la porque a
História não a define. Assim que a TAZ é nomeada (representada, mediada),
ela deve desaparecer, ela vai desaparecer, deixando para trás um invólucro
vazio, e brotará novamente em outro lugar, novamente invisível, porque é
indefinível pelos termos do Espetáculo. Assim sendo, a TAZ é uma tática
perfeita para uma época em que o Estado é onipresente e todo-poderoso
mas, ao mesmo tempo, repleto de rachaduras e fendas. E, uma vez que a
TAZ é um microcosmo daquele "sonho anarquista" de uma cultura de
liberdade, não consigo pensar em tática melhor para prosseguir em direção a
esse objetivo e, ao mesmo tempo, viver alguns de seus benefícios aqui e
agora.
Em suma, uma postura realista exige não apenas que desistamos
de esperar pela "Revolução", mas também que desistamos de desejá-la.
"Levantes", sim - sempre que possível, até mesmo com o risco de violência.
Os espasmos do Estado Simulado serão "espetaculares", mas na maioria dos
casos a tática mais radical será a recusa de participar da violência
espetacular, retirar-se da área de simulação, desaparecer.
A TAZ é um acampamento de guerrilheiros ontologistas: ataque
e fuja. Continue movendo a tribo inteira, mesmo que ela seja apenas dados
na web. A TAZ deve ser capaz de se defender; mas, se possível, tanto o
"ataque" quanto a "defesa" devem evadir a violência do Estado, que já não é
uma violência com sentido. O ataque é feito às estruturas de controle,
essencialmente às ideias. As táticas de defesa são a "invisibilidade", que é
uma arte marcial, e a "invulnerabilidade", uma arte "oculta" dentro das artes
marciais. A "máquina de guerra nômade" conquista sem ser notada e se
move antes do mapa ser retificado. Quanto ao futuro, apenas o autônomo
pode planejar a autonomia, organizar-se para ela, criá-la. E uma ação
conduzida por esforço próprio. O primeiro passo se assemelha a um satori -
a constatação de que a TAZ começa com um simples ato de percepção.

A PSICOTOPOLOGIA DA VIDA COTIDIANA

O CONCEITO DA TAZ surge inicialmente de uma crítica à revolução, e de
uma análise do levante. A revolução classifica o levante como um
"fracasso". Mas, para nós, um levante representa uma possibilidade muito
mais interessante, do ponto de vista de uma psicologia de libertação, do que
as "bem-sucedidas" revoluções burguesas, comunistas, fascistas etc.
Um outro elemento gerador do conceito da TAZ surge de um
processo histórico que eu chamo de "fechamento do mapa". O último
pedaço da Terra não reivindicado por uma nação-Estado foi devorado em
1899. O nosso século é o primeiro sem terra incógnita, sem fronteiras.
Nacionalidade é o princípio mais importante do conceito de "governo" -
nenhuma ponta de rocha no Mar do Sul pode ficar em aberto, nem um vale
remoto, sequer a lua ou os planetas. Essa é a apoteose do "gangsterismo
territorial". Nenhum centímetro quadrado da Terra está livre da polícia ou
dos impostos... em teoria.
O "mapa" é uma malha política abstraía, uma proibição
gigantesca imposta pela cenoura/cacetete condicionante do Estado
"Especializado", até que para a maioria de nós o mapa se torne o território -
não mais a "Ilha da Tartaruga3", mas os "Estados Unidos". E ainda assim o
mapa continua sendo uma abstração, porque não pode cobrir a Terra com a
precisão 1:1. Dentro das complexidades fractais da geografia atual, o mapa
pode detectar apenas malhas dimensionais. Imensidões embutidas e
escondidas escapam da fita métrica. O mapa não é exato, o mapa não pode
ser exato.
A Revolução fechou-se, mas a possibilidade do levante está
aberta. Por ora, concentramos nossas forças em "irrupções" temporárias,
evitando enredamentos com "soluções permanentes".
O mapa está fechado, mas a zona autônoma está aberta.
Metaforicamente, ela se desdobra por dentro das dimensões fractais
invisíveis à cartografia do Controle. E aqui podemos apresentar o conceito
de psicotopologia (e psicotopografia) como uma "ciência" alternativa àquela
da pesquisa e criação de mapas e "imperialismo psíquico" do Estado.
Apenas a psicotopografia é capaz de desenhar mapas da realidade em escala
1:1, porque apenas a mente humana tem a complexidade suficiente para
modelar o real. Mas um mapa 1:1 não pode "controlar" seu território, porque é completamente idêntico a esse território. Ele pode ser usado apenas para sugerir ou, de certo modo, indicar através de gestos algumas características.
Estamos à procura de "espaços" (geográficos, sociais, culturais,
imaginários) com potencial de florescer como zonas autônomas - dos
momentos em que estejam relativamente abertos, seja por negligência do
Estado ou pelo fato de terem passado despercebidos pelos cartógrafos, ou
por qualquer outra razão. A psicotopologia é a arte de submergir em busca
de potenciais TAZs.
O fim da Revolução e o fechamento do mapa são, no entanto,
apenas as fontes negativas da TAZ: ainda há muito a dizer sobre as suas
inspirações positivas. Reação somente não pode gerar a energia necessária
para "manifestar" uma TAZ. Um levante também precisa ser a favor de
alguma coisa.
l. Em primeiro lugar, podemos falar de uma antropologia natural
da TAZ. A família nuclear é a unidade base da sociedade de consenso, mas
não da TAZ. ("Famílias! Os avaros do amor! Como eu as odeio!" - Gide.) A
família nuclear, com suas consequentes "dores edipianas", parece ter sido
uma invenção neolítica, uma resposta à "revolução agrícola" com sua
escassez e hierarquia impostas. O modelo paleolítico é mais primário e mais
radical: o bando. O típico bando nômade ou semi-nômade de
caçadores/coletores é formado por cerca de cinquenta pessoas. Em
sociedades tribais mais populosas, a estrutura de bando é mantida por clãs
dentro da tribo, ou por confrarias como sociedades secretas ou iniciáticas,
sociedades de caça ou de guerra, associações de gênero, as "repúblicas de
crianças" e por aí adiante. Se a família nuclear é gerada pela escassez (e
resulta em avareza), o bando é gerado pela abundância (e produz
prodigalidade). A família é fechada, geneticamente, pela posse masculina
sobre as mulheres e crianças, pela totalidade hierárquica da sociedade
agrícola/industrial. Por outro lado, o bando é aberto - não para todos, é
claro, mas para um grupo que divide afinidades, os iniciados que juram
sobre um laço de amor. O bando não pertence a uma hierarquia maior, ele é
parte de um padrão horizontalizado de costumes, parentescos, contratos e
alianças, afinidades espirituais etc. (A sociedade dos índios norteamericanos
preserva até hoje certos aspectos dessa estrutura.)
Muitas forças estão trabalhando - de forma invisível - para
dissolver a família nuclear e resgatar o bando em nossa própria sociedade da
Simulação pós-Espetacular. Rupturas na estrutura do trabalho refletem a
"estabilidade" estilhaçada da unidade-lar e da unidade-família. Hoje em dia,
o "bando" de alguém inclui amigos, ex-esposos e amantes, pessoas
conhecidas em diferentes empregos e encontros, grupos de afinidade, redes
de pessoas com interesses específicos, listas de discussão etc. Cada vez mais
fica evidente que a família nuclear se torna uma armadilha, um ralo cultural,
uma secreta implosão neurótica de átomos rompidos. E a contra-estratégia óbvia emerge de forma espontânea na quase inconsciente redescoberta da
possibilidade - mais arcaica e, no entanto, mais pós-industrial - do bando.
2. A TAZ como um festival. Stephen Pearl Andrews certa vez
elaborou uma imagem da sociedade anarquista como um jantar, no qual
todas as estruturas de autoridade se dissolvem no convívio e na celebração
(veja o apêndice C). Aqui poderíamos também invocar Fourier e seu
conceito dos sentidos como base de transformação social - "toque do cio" e
"gastrosofia", e seu louvor às negligenciadas implicações do olfato e do
paladar. Os antigos conceitos de jubileu e bacanal se originaram a partir da
intuição de que certos eventos existem fora do "tempo profano", a unidade
de medida da História e do Estado. Essas ocasiões literalmente ocupavam
espaços vazios no calendário – intervalos intercalados. Na Idade Média,
quase um terço do ano era reservado para feriados e dias santos. Talvez os
protestos contra a reforma no calendário tenham tido menos a ver com os
"onze dias perdidos" do que com a sensação de que a ciência imperial estava
conspirando para preencher esses espaços vazios dentro do calendário, onde
a liberdade das pessoas havia se concentrado. Um golpe de Estado, um
mapeamento do ano, a dominação do próprio tempo, transformando o
cosmo orgânico num universo que funciona como um relógio. A morte do
festival.
Os que participam de levantes invariavelmente notam seus
aspectos festivos, mesmo em meio à luta armada, perigo e risco. O levante é
como um bacanal que escapou (ou foi forçado a desaparecer) de seu
intervalo intercalado e agora está livre para aparecer em qualquer lugar ou a
qualquer hora. Liberto do tempo e do espaço, ele, no entanto, possui bom
faro para o amadurecimento dos eventos e afinidade com o genius loci. A
ciência da psicotopologia indica "fluxos de força" e "pontos de poder" (para
usar metáforas ocultistas) que localizam a TAZ num espaço-temporal, ou
que, pelo menos, ajudam a definir sua relação com um determinado
momento e local.
A mídia nos convida a "celebrar os momentos da nossa vida"
com a unificação espúria entre mercadoria e espetáculo, o famoso não- evento da representação pura. Em resposta a tamanha obscenidade, nós
temos, por um lado, o espectro da recusa (comentado pelos situacionistas
John Zerzan, Bob Black et al.) e, por outro, a emergência de uma cultura festiva distanciada ou mesmo escondida dos pretensos gerentes do nosso
lazer. "Lute pelo direito de festejar" não é, na verdade, uma paródia da luta
radical, mas uma nova manifestação dessa luta, apropriada para uma época
que oferece a TV e o telefone como maneiras de "alcançar e tocar" outros
seres humanos, maneiras de "estar junto!"
Pearl Andrews estava certo: o jantar já é "a semente de uma nova
sociedade tomando forma dentro do invólucro da antiga" (IWW Preamble).
A "reunião tribal" dos anos 60, o conclave florestal de eco-sabotadores, o
Beltane4 idílico dos neo-pagãos, as conferências anarquistas, as festas gays...
as festas de aluguel no Harlem dos anos 20, as casas noturnas, os banquetes,
os piqueniques dos antigos libertários - devemos perceber que todos esses
eventos são, de certo modo, "zonas libertas", ou pelo menos TAZs em
potencial. Seja ela apenas para poucos amigos, como é o caso de um jantar,
ou para milhares de pessoas, como um carnaval de rua, a festa é sempre
"aberta" porque não é "ordenada". Ela pode até ser planejada, mas se ela não acontece é um fracasso. A espontaneidade é crucial.
A essência da festa: cara a cara, um grupo de seres humanos
coloca seus esforços em sinergia para realizar desejos mútuos, seja por boa
comida e alegria, por dança, conversa, pelas artes da vida. Talvez até mesmo
por prazer erótico ou para criar uma obra de arte comunal, ou para alcançar
o arroubamento do êxtase. Em suma, uma "união de únicos" (como coloca
Stirner) em sua forma mais simples, ou então, nos termos de Kropotkin, um
básico impulso biológico de "ajuda mútua". (Aqui devemos mencionar a
"economia do excesso" de Bataille e sua teoria sobre a cultura potlatch.)
3. O conceito de nomadismo psíquico (ou, como o chamamos
por brincadeira, "cosmopolitismo desenraizado") é vital para a formação da
realidade da TAZ. Aspectos desse fenômeno foram discutidos por Deleuze e
Guattari em Tratado de Nomadologia: a máquina de guerra, por Lyotard
em Driftworks e por vários autores na edição "Oásis" da Semiotext(e).
Preferimos o termo "nomadismo psíquico" a "nomadismo urbano" ou
"nomadologia", "ações à deriva" etc., simplesmente para poder juntar todos
esses conceitos num único sistema complexo que será estudado à luz da
emergência da TAZ.
"A morte de Deus", que de certo modo representou a
descentralização do "projeto europeu", abriu a possibilidade de uma visão
de mundo pós-ideológica e multifacetada, capaz de se mover, de forma
"desenraizada", da filosofia para o mito tribal, da ciência natural para o
taoísmo.Capaz de enxergar, pela primeira vez, através de olhos
caleidoscópicos como os olhos de algum inseto dourado, cada faceta
apresentando a concepção de outro mundo inteiramente diverso.
Mas essa visão foi alcançada às custas de se viver numa época na
qual a velocidade e o "fetichismo da mercadoria" criaram uma unidade
tirânica e falsa que tende a ofuscar toda a diversidade cultural e toda a
individualidade para que "todo lugar seja igual ao outro". Este paradoxo cria
"ciganos", viajantes psíquicos guiados pelo desejo ou pela curiosidade,
errantes com laços de lealdade frouxos (na verdade, desleais ao "projeto
europeu", que perdeu todo o seu charme e vitalidade), desligados de
qualquer local ou tempo determinado, em busca de diversidade e aventura...
Essa descrição engloba não apenas artistas e intelectuais classe X, como
também trabalhadores imigrantes, refugiados, os "sem-teto", turistas, e todos
aqueles que vivem em trailers - assim como pessoas que "viajam" na
internet, sem talvez jamais saírem de seus quartos (ou aquelas como
Thoreau, que "viajou demais – em Concord"), para finalmente englobar
"todo mundo", todos nós, vivendo em nossos automóveis, em nossas férias,
aparelhos de TV, livros, filmes, telefones, trocando de emprego, mudando
de "estilo de vida", de religião, de dieta etc. etc.
O nomadismo psíquico como uma tática, aquilo que Deleuze e
Guattari metaforicamente chamam de "máquina de guerra", muda o
paradoxo de um modo passivo para um modo ativo e talvez até mesmo
"violento". Os últimos espasmos de "Deus" e seus sacolejos no leito de
morte vêm se arrastando por tanto tempo - nas formas do capitalismo,
fascismo e comunismo, por exemplo - que ainda existe muita "destruição
criativa" para ser executada por comandos ou apaches (literalmente,
inimigos) pós-bakunianos e pós-nietzscheanos. Esses nômades exercitam a razzia, são corsários, são vírus. Sentem tanto o desejo quanto a necessidade
de TAZs, acampamentos de tendas negras sob as estrelas do deserto,
interzonas, oásis fortificados escondidos nas rotas das caravanas secretas,
trechos de selva e sertões "liberados", áreas proibidas, mercados negros e
bazares underground.
Esses nômades orientam seu percurso por estrelas estranhas, que
podem ser núcleos luminosos de dados no ciberespaço ou, talvez,
alucinações. Abra um mapa do território; sobre ele, coloque um mapa das
mudanças políticas; sobre ele, ponha um mapa da internet, especialmente da
contra-net, com sua ênfase no fluxo clandestino de informações e logística;
e, por último, sobre tudo isso, o mapa 1:1 da imaginação criativa, estética,
valores. A malha resultante ganha vida, animada por inesperados
redemoinhos e explosões de energia, coagulações de luz, túneis secretos,
surpresas.

A INTERNET E AWEB
O PRÓXIMO ELEMENTO que contribui para a TAZ é tão vasto e ambíguo
que precisa de uma seção à parte somente para ele.
Já falamos da net, que pode ser definida como a totalidade de
todas as transferências de informações e de dados. Algumas dessas
transferências são privilégio e exclusividade de várias elites, o que lhes
confere um aspecto hierárquico. Outras transações são abertas a todos - e
deste modo a internet também possui um aspecto horizontal e nãohierárquico.
Dados militares e de segurança nacional são restritos, assim
como informações bancárias e monetárias, e outras informações deste tipo.
Porém, de maneira geral, a telefonia, o sistema postal, os bancos de dados
públicos etc. são acessíveis a todos. Desta forma, de dentro da net começou
a emergir um tipo de contra-net, que nós chamaremos de web (como se a
internet fosse uma rede de pesca e a web as teias de aranha tecidas entre os
interstícios e rupturas da net). Em termos gerais, empregaremos a palavra web para designar a estrutura aberta, alternada e horizontal de troca de
informações, ou seja, a rede não-hierárquica, e reservaremos o termo contra-net para indicar o uso clandestino, ilegal e rebelde da web, incluindo
a pirataria de dados e outras formas de parasitar a própria net. A net, a web e
a contra-net são partes do mesmo complexo, e se mesclam em inúmeros
pontos. Esses termos não foram criados para definir áreas, mas para sugerir
tendências.
(Digressão: Antes de condenar a web ou a contra-net por seu
"parasitismo", que jamais poderia ser uma força verdadeiramente
revolucionária, pergunte-se o que significa "produção" na era da Simulação.
Qual é a "classe produtora"? Talvez você seja forçado a admitir que esses
termos perderam o sentido. De qualquer forma, as respostas a essas
perguntas são tão complexas que a TAZ tende a ignorá-las por completo e
simplesmente escolhe o que pode usar. "Cultura é nossa natureza", e nós
somos os corvos ladrões, os caçadores/coletores do mundo da Comunicação
Tecnológica.)
Supõe-se que as formas atuais da web não-oficial sejam ainda
bastante primitivas: a rede marginal de zines, as redes BBS5, softwares
piratas, grampos telefônicos, alguma influência na mídia impressa e no rádio
e quase nenhuma nos outros grandes canais de comunicação - nenhuma
emissora de TV, nenhum satélite, nenhuma fibra ótica, nenhum cabo etc.
etc. No entanto, a própria net apresenta um padrão de relações entre sujeitos
("usuários") e objetos ("dados") em constante mutação/evolução. A natureza
dessas relações tem sido explorada exaustivamente, de McLuhan a Virilio.
Usaríamos páginas e mais páginas para "provar" o que agora "todo mundo
já sabe". Em vez de rediscutir tudo isso, estou interessado em investigar
como essas relações em constante evolução sugerem modos de
implementação para a TAZ.
A TAZ possui uma localização temporária mas real no tempo, e
uma localização temporária mas real no espaço. Porém, obviamente, ela
também precisa ter um local dentro da web, outro tipo de local: não real,
mas virtual; não imediato, mas instantâneo. A web não fornece apenas um
apoio logístico à TAZ, também ajuda a criá-la. Grosso modo, poderíamos
dizer que a TAZ "existe" tanto no espaço da informação quanto no "mundo
real". A web pode compactar muito tempo, em forma de dados, num
"espaço" infinitesimal. Dizemos que a TAZ, por ser temporária, não oferece
algumas das vantagens de uma liberdade com duração e de uma localização
mais ou menos estável. Mas a web oferece uma espécie de substituto para
parte disso - ela pode informar a TAZ, desde o seu início, com vastas
quantidades de tempo e espaço compactados que estavam sendo
"subutilizados" na forma de dados.
Nesse ponto da evolução da web, e considerando nossas
exigências por algo que seja palpável e sensual, devemos considerar a web
fundamentalmente como um sistema de suporte, capaz de transmitir
informações de uma TAZ a outra, ou defender a TAZ, tornando-a
"invisível" ou dando-lhe garras, conforme a situação exigir. Porém mais do
que isso: se a TAZ é um acampamento nômade, então a web ajuda a criar épicos, canções, genealogias e lendas da tribo. Ela fornece as trilhas de
assalto e as rotas secretas que compõem o fluxo da economia tribal. Ela até
mesmo contém alguns dos caminhos que as tribos seguirão só no futuro,
alguns dos sonhos que eles viverão como sinais e presságios.
Nossa web não depende de nenhuma tecnologia de computação
para existir. O boca-a-boca, os correios, a rede marginal de zines, as
"árvores telefônicas" e coisas do gênero são suficientes para se construir
uma rede de informação. A chave não é o tipo ou o nível da tecnologia
envolvida, mas a abertura e a horizontalidade da estrutura. Contudo, o
próprio conceito da net implica o uso de computadores. Na imaginação da
ficção científica, a net é conduzida para a condição de ciberespaço (como Tron e no livro de William Gibson, Neuromancer) e para a pseudo-telepatia
da "realidade virtual". Como fã do cyberpunk, não consigo deixar de antever
o importante papel que o "hacking da realidade" terá na criação das TAZs.
Assim como Gibson e Sterling, acredito que a net oficial jamais conseguirá
conter a web ou a contra-net - a pirataria de dados, as transmissões nãoautorizadas
e o fluxo livre de informações não podem ser detidos. (Na
verdade, no meu entender, a Teoria do Caos pressupõe que nenhum sistema
de controle universal seja possível.)
No entanto, deixando de lado as meras especulações sobre o
futuro, devemos encarar uma questão séria sobre a web e a tecnologia que
ela envolve. A TAZ deseja, acima de tudo, evitar a mediação, experimentar
a existência de forma imediata. A essência da TAZ é "peito-a-peito", como
dizem os sufis, ou cara-a-cara. Mas, MAS: a essência da web é mediação,
onde as máquinas são nossos embaixadores - a carne é irrelevante exceto
como um terminal, com todas as conotações sinistras do termo.
Talvez a melhor maneira para a TAZ encontrar seu próprio
espaço seja adotando duas atitudes aparentemente contraditórias em relação à alta tecnologia e sua apoteose, a net: a) aquilo que podemos chamar de Quinto Estado, a posição neo-paleolítica, pós-situacionista e ultra-verde,
que se traduz como um argumento ludita contra a mediação e contra a
internet; e b) os cyberpunks utópicos, os futuro-libertários, os hackers da
realidade e seus aliados, que percebem a internet como um passo adiante na
nossa evolução, e que acreditam que qualquer possível efeito maligno da
mediação possa ser superado, ao menos depois de termos liberado os meios
de produção.
A TAZ concorda com os hackers porque deseja - em parte -
ganhar existência através da net, e até mesmo através da mediação da net.
Mas ela também concorda com os partidários do ambientalismo porque
possui uma intensa percepção de si mesma como corpo e sente nojo da
cibergnose, a tentativa de transcender o corpo através da instantaneidade e
da simulação. A TAZ tende a condenar a dicotomia entre tecnologia e antitecnologia
como um equívoco: como é um equívoco a maioria das
dicotomias, onde opostos aparentes acabam se revelando falsificações ou
mesmo alucinações provocadas pela semântica. Essa é uma forma de dizer
que a TAZ quer viver neste mundo, não na ideia de outro mundo, um
mundo visionário qualquer nascido de uma falsa unificação (todo verde OU todo metal), que só pode ser mais um castelo nas nuvens (ou, como disse
Alice, "Geléia ontem ou geléia amanhã, mas jamais geléia hoje").
A TAZ é "utópica" no sentido que imagina uma intensificação da
vida cotidiana ou, como diriam os surrealistas, a penetração do Maravilhoso
na vida. Mas não pode ser utópica no sentido literal do termo, sem local, ou
"lugar do lugar nenhum" A TAZ existe em algum lugar. Ela fica na
interseção de muitas forças, como um ponto de poder pagão na junção das
misteriosas linhas de realidades paralelas, visível para o adepto em detalhes
do terreno, da paisagem, das correntes de ar, da água, dos animais e,
aparentemente, sem qualquer relação um com o outro. Mas agora essas
linhas não pertencem apenas ao tempo e ao espaço. Algumas existem
unicamente "dentro" da web, apesar de possuírem também interseção com o
tempo e os lugares reais. Talvez algumas dessas linhas sejam
"extraordinárias", no sentido que não existem convenções para sua
classificação. Talvez essas linhas possam ser melhor estudadas à luz da
ciência do caos do que à luz da sociologia, estatística, economia etc. Os
padrões de força que geram a existência da TAZ têm algo em comum com
estes caóticos "Estranhos Atratores" que existem, por modo de dizer, entre
as dimensões.
Por uma característica de sua própria natureza, a TAZ faz uso de
qualquer meio disponível para concretizar-se - pode ganhar vida tanto numa
caverna quanto numa cidade espacial - mas, acima de tudo, ela vai viver,
agora, ou o quanto antes, sob qualquer forma, seja ela suspeita ou
desorganizada. Espontaneamente, sem preocupar-se com ideologias ou antiideologias.
Ela vai fazer uso do computador porque o computador existe,
mas também usará poderes tão completamente divorciados da alienação e da
simulação que lhe garantirão um certo paleolitismo psíquico, um espírito
xamânico primordial que vai "infectar" até a própria net (o verdadeiro
sentido do cyberpunk, como eu o entendo). Porque a TAZ é uma
intensificação, um excesso, uma abundância, um potlatch, a vida vivida em
vez de sobrevivida (a chorosa marca dos anos 80), e não pode ser definida
como tecnológica ou anti-tecnológica. Ela se contradiz, como alguém que
verdadeiramente despreza fantasmas e aparições, porque deseja ser, a
qualquer custo ou prejuízo para a "perfeição" ou imobilidade final.
No Mandelbrot Set6 e em suas variações no campo da
computação gráfica, encontramos – num universo fractal - mapas que estão
embutidos e escondidos dentro de mapas que estão dentro de outros mapas
etc., até o limite do poder do computador. Qual é a função deste mapa que
de certo modo apresenta uma escala de 1:1 em relação à dimensão fractal?
O que podemos fazer com ele, além de admirar sua elegância psicodélica?
Se fôssemos imaginar um mapa da informação - uma projeção
cartográfica da net como um todo - teríamos que incluir os elementos do
caos que já começaram a aparecer, por exemplo, nas operações de processos
paralelos complexos, nas telecomunicações, na transferência de "dinheiro"
eletrônico, nos vírus, na guerrilha dos hackers etc.
Cada uma dessas "áreas" de caos poderiam ser representadas por
topografias semelhantes às do Mandeibrot Set, de forma que as "penínsulas"
ficassem embutidas ou escondidas dentro do mapa e quase
"desaparecessem". Esta "escrita" - que em parte desaparece e em parte se
esconde - representa o próprio processo que já é parte intrínseca da net, não
totalmente visível nem para si mesmo, in-Controlável. Em outras palavras, o
M Set, ou qualquer coisa semelhante, pode vir a ser útil na "armação" (em
todos os sentidos da palavra) para o surgimento da contra-net como um
processo caótico ou, para usar um termo de Prigogine, como uma "evolução
criativa". No mínimo, o M Set serve como uma metáfora para o
"mapeamento" da interface da TAZ com a net como um desaparecimento da informação. Toda "catástrofe" na net é um nódulo de poder para a web, a
contra-net. A net será prejudicada pelo caos, enquanto que a web vai
prosperar nele.
Seja através de uma simples pirataria de dados, ou do
desenvolvimento de formas mais complexas de relacionamento com o caos,
o hacker da web, o cibernauta da TAZ, encontrará maneiras de aproveitar as
perturbações, quedas e breakdowns da net (maneiras de gerar informação a
partir da "entropia"). O hacker da TAZ trabalhará para a evolução de
conexões fractais clandestinas como um rastreador de fragmentos de
informações, um contrabandista, um chantagista, talvez até mesmo como
um ciber-terrorista. Estas conexões, e as diferentes informações que fluem
entre elas e por elas, formarão as "válvulas de poder" para a emergência da
própria TAZ - como é necessário roubar energia elétrica dos monopólios
distribuidores de eletricidade para iluminar uma casa abandonada que foi
invadida.
Desta forma, a web, para produzir situações propícias para a
TAZ, irá paralisar a net. Mas também podemos conceber esta estratégia
como uma tentativa de arquitetar a construção de uma net alternativa e
autônoma, "livre" e não parasítica, que servirá como a base de uma "nova
sociedade emergindo do invólucro da antiga". Em termos práticos, a contranet
e a TAZ podem ser consideradas como fins em si mesmas - mas, em
teoria, também podem ser vistas como formas da batalha para se forjar uma
realidade diferente.
Uma vez dito isso, devemos admitir algumas falhas nos
computadores, algumas questões ainda sem resposta, especialmente em
relação aos PCs (computadores pessoais).
A história da rede de computadores, BBS e várias outras
experiências em eletro-democracia tem sido até agora mais um hobby do
que qualquer outra coisa. Muitos anarquistas e liberais mantêm uma grande
esperança no PC como uma arma para a libertação e auto-liberação - mas
não temos ainda nenhum ganho real, nenhuma liberdade palpável.
Não tenho interesse algum por uma hipotética classe
empreendedora emergente formada por processadores de dados autônomos
que logo estarão capacitados para administrar uma grande empresa de
queijos ou qualquer outro trabalho de merda para várias corporações e
burocracias. No entanto, não é preciso ser bidu para prever que esta "classe"
vai gerar sua subclasse - um tipo de proletariado mauricinho: por exemplo,
donas-de-casa que trarão um "segundo salário" para suas famílias
transformando suas próprias casas em lojinhas eletrônicas, formando
pequenas tiranias de trabalho, onde o "patrão" é a rede de computadores.
Também não me impressionam os tipos de informações e
serviços oferecidos pelas redes contemporâneas "radicais". Dizem que em
algum lugar existe uma "economia da informação". Talvez, mas a info
trocada pêlos canais "alternativos" de BBS parece ser constituída
integralmente de conversa fiada ou papo tecnológico. Isso é uma nova
economia? Ou apenas um passatempo para os aficionados? OK, os PCs
causaram uma nova "revolução da imprensa". OK, redes marginais na web
estão evoluindo. OK, posso agora fazer seis telefonemas ao mesmo tempo.
Mas que diferença isso faz para minha vida diária?
Francamente, eu já possuía muitos dados para alimentar meus
sentidos e percepções: livros, filmes, TV, teatro, telefone, correio, estados
alterados de consciência, e daí por diante. Preciso realmente de um PC para
obter ainda mais informações desse tipo? Você me oferece informação secreta? Bem... talvez. Fico tentado, mas eu exijo segredos maravilhosos, e
não apenas os números de telefones que não estão na lista ou trivialidades
sobre a polícia e os políticos. Sobretudo, quero que os computadores me
forneçam informações relacionadas a bens reais - "as coisas boas da vida",
como o IWW Preamble diz. Agora, já que acuso os hackers e os usuários
das BBS de possuírem uma irritante vacuidade intelectual, devo descer das
nuvens barrocas da teoria e da crítica e explicar o que quero dizer com bens reais.
Eu diria que tanto por razões políticas quanto culturais eu desejo
boa comida, uma comida melhor do que esta que posso obter do capitalismo
- não poluída e agraciada com sabores fortes e naturais. Para complicar,
imagine que a comida que eu desejo é ilegal - talvez leite não pasteurizado,
ou a deliciosa fruta cubana mamey, que não pode ser importada pelos EUA
porque suas sementes são alucinógenas (pelo menos foi isso que me
disseram). Não sou um fazendeiro. Finja que eu seja um importador de
perfumes raros e afrodisíacos, e suponha que a maior parte do meu estoque
seja ilegal. Ou talvez eu apenas queira trocar serviços de processamento de
dados por nabos orgânicos, mas recuse a declará-lo no imposto de renda
(como a lei exige, acredite se puder). Ou talvez eu queira encontrar-me com
outros seres humanos para atos de prazer de comum acordo, mas ilegais
(isto já foi tentado, mas todas as BBS de sexo hardcore foram proibidas - e
de que serve um mundo underground com uma torpe segurança?). Em
suma, suponha que eu esteja cansado de mera informação, do fantasma
dentro da máquina. De acordo com vocês, os computadores já deveriam ser
capazes de possibilitar a realização dos meus desejos por comida, drogas,
sexo, sonegação fiscal. Então, qual é o problema? Por que isso não está
acontecendo?
A TAZ aconteceu, está acontecendo e vai acontecer com ou sem
o computador. Mas para que a TAZ realize plenamente o seu potencial, ela
deve tornar-se menos um caso de combustão espontânea e mais uma
situação de "ilhas na net". A net, ou melhor, a contra-net assume a promessa
de ser um aspecto integral da TAZ, uma adição que irá multiplicar o seu
potencial, um salto "quantum", um salto enorme em termos de
complexidade e significância. A TAZ agora deve existir dentro de um
mundo de espaço puro, o mundo dos sentidos. No limiar, mesmo num ponto
de evanescência, a TAZ deve combinar informações e desejos para realizar
sua aventura (seu "acontecimento"), para preencher-se até as bordas de seu
destino, para intensificar-se com sua própria emergência.
Talvez a escola neo-paleolítica tenha razão quando diz que todas
as formas de alienação e mediação devem ser destruídas ou abandonadas
como condição para que nossas metas sejam alcançadas - ou talvez o
anarquismo verdadeiro só possa ser realizado no espaço sideral, como dizem
algums libertários futurólogos. Mas a TAZ não se preocupa muito com o
"foi" ou o "será". A TAZ está interessada em resultados, ataques com êxito à
realidade consensual, conquistas de patamares de vida mais altos e intensos.
Se o computador não pode ser utilizado para este projeto, então ele precisa
ser dispensado. Minha intuição, no entanto, diz que a contra-net já está se
formando, ou talvez já exista - embora eu não possa prová-lo. A teoria da
TAZ está, em grande parte, baseada nesta intuição. É claro que a nossa web
também encerra redes de troca não-computadorizadas, como a samizdat, o
mercado negro etc. - mas o pleno potencial de redes de informação nãohierárquicas
aponta para o computador como seu instrumento por excelência. Agora, espero pelos hackers que provem que estou certo, que
minha intuição é válida. Onde estão meus nabos?

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