Tuesday, August 26, 2008

Comunicado #6

I. São do Apocalipse: ``Teatro Secreto''

Conquanto nenhum Stalin fungue em nossos pescoços, por que não fazer alguma arte a serviço de... um insurreição?
Não importa se é ``impossível''. O que mais devemos aspirar atingir senão o ``impossível''? Devemos esperar que outras pessoas revelem nossos verdadeiros desejos?

Se a arte morreu, ou o público desapareceu, então nos encontramos livres de dois pesos mortos. Em potencial, todos nós somos algum tipo de artista - e potencialmente todo público recuperou sua inocência, sua capacidade de tornar-se a arte que experiência.

Desde que possamos escapar dos museus que carregamos dentro de nós mesmos, desde que conseguimos parar de nos vender ingressos para as galerias que existem dentro de nossos próprios crânios, poderemos começar a contemplar uma arte que recrie o objetivo do feiticeiro: mudar a estrutura da realidade pela manipulação dos símbolos vivos (neste caso, as imagens que nos foram ``dadas'' pelos organizadores desse salão - assassinato, guerra, fome e ganância).

Podemos agora contemplar ações estéticas que possuam um pouco da ressonância do terrorismo (ou ``crueldade'', como definiu Artaud) e cujo objetivo é destruir as abstrações em vez de destruir as pessoas, a libertação em vez do poder, o prazer em lugar do lucro, a alegria e não o medo. ``Terrorismo Poético.''

As imagens que escolhemos têm a potência da escuridão - mas todas as imagens são máscaras, e por trás dessas máscaras existem energias que podemos direcionar para a luz e o prazer.

Por exemplo, o homem que inventou o aikido era um samurai que se tornou pacifista e se recusou a lutar pelo imperialismo japonês. Ele acabou virando um eremita, vivia numa montanha sentado sob uma árvore...

Um dia, um ex-colega samurai foi visitá-lo e acusou-o de traição, covardia, etc. O eremita não disse nada, apenas continuou sentado - e então o soldado, irado, puxou sua espada e atacou-o. Espontaneamente, o mestre desarmado tomou a espada do soldado e devolveu-a em seguida. Várias vezes o soldado tentou matá-lo, usando todos os golpes mais sutis de seu repertório - mas a partir de sua mente vazia o eremita inventava, todas as vezes, novas maneiras de desramá-lo.

O soldado, é claro, tornou-se seu primeiro discípulo. Mais tarde, eles aprenderam a esquivarem-se de balas. Podemos contemplar alguma forma de metadrama criado para capturar um pouco do sabor dessa atuação, que deu origem a uma arte totalmente nova, um modo totalmente não violento de luta - guerra sem assassinato - ``a espada da vida'', e não a da morte.

Uma conspiração de artistas, anônima como qualquer bombardeador maluco, mas voltada para um ato de generosidade gratuita no lugar da violência - para o milênio em vez de para o apocalipse - ou, ainda, apontada para o presente momento de choque estético a serviço da realização e liberação.

A arte conta maravilhosas mentiras que se tornam realidade.

É possível criar um TEATRO SECRETO onde o artista quanto a audiência desaparecem completamente - apenas para reaparecer em outro plano, onde a vida e a arte se tornam a mesma coisa, puro oferecimento das dádivas?

II. Assassinato - Guerra - Fome - Ganância

Os Maniqueus e os Cátaros acreditavam que o corpo pode ser espiritualizado - ou melhor, que o corpo simplesmente contamina o espírito puro e portanto deve ser rejeitado totalmente. Os gnósticos perfecti (dualistas radicais) não se alimentavam até morrer para escapar do corpo e retornar ao pleroma da luz pura.
Então: para fugir dos malefícios da carne - assassinato, guerra, fome ganância - paradoxalmente apenas existe um caminho: o assassinato do próprio corpo, guerra contra a carne, fome até a morte, ganância por salvação.

Os monistas radicais, no entanto (ismaelitas, ranters, antinomianos), consideram que corpo e espírito são uma coisa só, que o mesmo espírito que impregna uma pedra negra também infunde a carne com sua luz; que vive e tudo é vida.

``As coisas são o que são espontaneamente... tudo é natural... tudo está em movimento como se existisse um Verdadeiro Senhor para movê-las - mas, se procuramos por evidências desse Senhor, não conseguiremos encontrá-las.'' (Kuo Hsiang)

Paradoxalmente, o caminho monista também não pode ser seguido sem algum tipo de ``assassinato, guerra, fome, ganância'': a transformação da morte em vida (comida, entropia negativa) - guerra contra o Império das Mentiras - ``o jejum da alma'', ou a renúncia à Mentira, a tudo que não é vida - e ganância pela própria vida, o poder absoluto do desejo.

Mais ainda: sem o conhecimento da escuridão (``conhecimento carnal'') não pode existir o conhecimento da luz (``gnose''). Os dois conhecimentos não são meramente complementares: são idênticos, como a mesma nota tocada em duas oitavas diferentes. Heráclito afirma que a realidade persiste num estado de ``guerra''. Apenas notas opostas podem construir a harmonia. (``O Caos é a soma de todas as ordens.'')

Dê cada um desses quatro termos uma máscara de linguagem diferente (chamar as Fúrias de ``as Gentis'' não é um mero eufemismo, mas uma maneira de revelar ainda mais significados).

Mascarados, ritualizados, percebidos como arte, os termos assumem sua beleza tenebrosa, sua ``Luz Negra''.

Em vez de assassinato, diga caçada, a pura economia paleolítica de todas sociedades tribais arcaicas e não autoritárias - venery, tanto a caça e o consumo da carne quanto o encanto de Vênus, do desejo. Em vez de guerra, diga insurreição, não a revolução de classes e poderes, mas a do eterno rebelde, o sombrio que revela a luz. Em vez de ganância, diga ânsia, desejo inconquistável, amor louco. E, em vez de fome, que é um tipo de mutilação, fale de completitude, inteireza, superanbundância, generosidade do eu sobe em espirais em direção ao Outro.

Sem esse baile de máscaras, nada seria criado. A mais antiga mitologia faz de Eros o primeiro rebento do Caos. Eros, o selvagem que pode domar, é a porta pela qual o artista volta ao Caos, ao Uno, e depois retorna, reaparece novamente, trazendo uma das formas da beleza. O artista, o caçador, o guerreiro: aquele que é ao mesmo tempo apaixonado e equilibrado, ganancioso e altruísta ao extremo. Devemos ser salvos de todas as salvações que querem salvar-nos de nós mesmos, do animal que é também nossa anima, nossa própria força de vida, e também nosso animus, nosso auto-apoderamento vitalizador, que pode até mesmo se manifestar como raiva e ganância.

A BABILÔNIA ensinou-nos que a nossa carne é imunda - escravizou-nos com esse argumento e a promessa de salvação. Mas, se a carne já estiver ``salva'', já for luz - e se até mesmo a própria consciência for um tipo de carne, um éter simultaneamente palpável e vivo -, então não precisamos de nenhum poder para interceder a nosso favor. A selva, como diz Omar, é o paraíso agora mesmo.

A verdadeira posse do assassinato pertence ao Império, pois apenas a liberdade é vida completa. A guerra também é babilônica - nenhuma pessoa livre morrerá pelo engrandecimento de uma outra. A fome passa a existir apenas com a civilização dos salvadores, os reis-padres - não foi José quem ensinou ao faraó a especular sobre as colheitas futuras? A ganância - pela terra, pela riqueza simbólica, pelo poder de deformar os corpos e as almas dos outros para sua própria salvação - a ganância tampouco surge da ``natureza natural'', mas do represamento e da canalização de todas as energia para a glória do Império.

Contra tudo isso, o artista tem o baile de máscaras, a radicalização total da linguagem, a invenção de um ``Terrorismo Poético'' que vai atacar não seres humanos, mas idéias malignas, pesos mortos na tampa do caixão dos nossos desejos. A arquitetura da asfixia e da paralisia será destruída apenas pela nossa celebração total de tudo - incluindo a escuridão.

-- Solstício de Verão, 1986

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