Tuesday, August 26, 2008

Instruções para Kali Yuga

A KALI YUGA ainda tem mais ou menos 200 mil anos para brincar - uma boa notícia para advogados e avatares do Caos, mas uma má notícia para brâmanes, jeovista, deuses da burocracia e seus lacaios.
Eu sabia que Darjeeling guardava alguma coisa para mim assim que ouvi o seu nome - dorje ling - cidade o trovão. Cheguei um pouco antes das monções, em 1969. Antiga estação montanhosa britânica, sede de verão para o governo de Bengala - ruas com a forma de escadas de madeira curvas, do mercado avistava-se Sikkim e o Monte Katchenhunga - templos e refugiados tibetanos - belas pessoas de porcelana amarela chamadas Lepchas (os verdadeiros aborígenes) - hindus, muçulmanos, nepaleses e budistas butaneses, além de ingleses decadentes que perderam o caminho para casa em 1947, ainda à frente de bancos antiquados e lojas de chá.

Conheci Ganesh Baba, um saddhur gordo e de barbas brancas com um hiperimpecável sotaque de Oxford - nunca vi ninguém fumar tanta maconha, um narguilé cheio após o outro, perambulávamos pelas ruas, onde ele jogava bola com crianças barulhentas ou arrumava brigas nos bares, perseguindo funcionário do comércio assustados com seu guarda-chuva, e morrendo de rir.

Ele me apresentou a Sri Kamanaransan Biswas, um homem de meia-idade, pequeno e delicado, metido num terno surrado. Era funcionário do governo de Bengala e se ofereceu para me ensinar tantra. O senhor Biswas vivia num minúsculo bangalô empoeirado num morro íngreme, enevoado e salpicado de pinheiros, onde eu o visitava diariamente com doses de conhaque barato para puja e bebericagens - ele me encorajava a fumar enquanto conversávamos, um vez que, para Kali, também a maconha é sagrada.

Em sua selvagem juventude, o senhor Biswas havia sido membro do Partido Terrorista de Bengala, que incluía tanto adoradores de Kali e místicos muçulmanos heréticos quanto anarquista e extremistas de esquerda. Ganesh Baba parecia provar esse passado secreto, como se fosse um sinal da força tântrica oculta do senhor Biswas, escondida por trás de sua aparência externa dócil e acomodada.

Nós discutimos minhas leituras de Sir John Woodruffe (Arthur Avalon) todas as tardes. Eu caminhava até lá através da neblina fria do verão, de armadilhas de espíritos tibetanas adejando na brisa úmida que surgia da bruma e dos cedros. Praticávamos o Tara-mantra e o Tara-mudra (ou Yoni-mudra), e estudávamos o diagrama Tara-iantra para fins mágicos. Um vez, visitamos um templo para o Marte hindu (como o nosso, ao mesmo tempo planeta e deus da guerra), onde ele comprou um anel de dedo feito de prego de ferradura de cavalo e me deu. Mais conhaque e maconha.

Tara: uma das formas de Kali, muito semelhante em atributos. Meio anã, nua, com quatro braços armados, dançando sobre um Shiva morto, colar de crânios de cabeças cortadas, língua gotejando sangue, pele de um profundo azul-cinzento (a cor precisa das nuvens das monções). Todo dia, mais chuva - deslizamentos de terra bloqueando as estradas. Meu visto de permanência em área fronteiriça expira. O senhor Biswas e eu descemos as deslizantes montanhas do Himalaia de jipe e de trem rumo à sua cidade natal, Siliguri, localizada nas planícies de Bengala, onde o Ganges estendeu-se num encharcado delta verdejante.

Visitamos sua esposa no hospital. No ano anterior, uma enchente havia submergido Siliguri e matado dezenas de milhares de pessoas. Houve uma epidemia de cólera, a cidade inteira parecia um naufrágio, manchada de algas e arruinada, as paredes do hospital ainda estavam empastadas de lodo, sangue, vômito, os líquidos da morte. Ela senta-se silenciosa na sua cama olhando sem piscar para destinos horrendos. O lado negro da deusa. Ele me dá uma litografia colorida de Tara que miraculosamente flutuou sobre a água e foi salva.

Naquela noite assistimos a uma cerimônia no templo local para Kali, um pequeno, humilde e meio arruinado santuário à beira da estrada - a luz proveniente de tochas era a única iluminação - cânticos e tambores com uma síncope estranha, quase africana, totalmente anticlássica, primordial e no entanto insanamente complexa. Bebemos, fumamos.

Só no cemitério, próximo a um cadáver meio-queimado, sou iniciado no Tara-Tantra. No dia seguinte, febril e distante, dou adeus e sigo Assam, para o grande templo do yoni de Shakti, em Gauhati, em tempo para o festival anual. Assam é território proibido e eu não tenho um visto. À meia-neite, em Gauhati, caio fora do trem, volto pelos trilhos sob chuva e com lama até os joelhos em total escuridão, ando às cegas até finalmente entrar na cidade e encontro um hotel cheio de insetos. Estou doente como um cão. Não durmo.

De manhã, viagem de ônibus para o templo, que fica numa montanha próxima. Torres enormes, divindades populares, pátios, edifícios anexos - centenas de milhares de peregrinos - saddhus esquisitos vindos de suas cavernas de gelo atarracados em peles de tigres e cantando. Ovelhas e pombos estão sendo abatidos aos milhares, uma verdadeira hecatombe - (nenhum outro sahib branco em vista) - as sarjetas escoam uma polegada de sangue - espadas-Kali de lâmina curva cortam cortam cortam, cabeças mortas rolam nas pedra escorregadias da rua.

Quando Shiva cortou Shakti em 53 pedaços e os espalhou sobre toda a bacia do Ganges, sua vagina caiu lá. Alguns sacerdotes amigáveis falam inglês e me ajudaram a encontrar a caverna onde o yoni está exposto. Nessas alturas, sei que estou seriamente doente, mas determinado a terminar o ritual. Uma multidão de peregrinos (todos ao menos uma cabeça mais baixos do que eu) literalmente me engolfam como a correnteza do mar e me carregam suspenso enquanto descemos umas escadas curvas, asfixiantes e trogloditas até entrarmos numa caverna-ventre claustrofóbica onde sou levando, tonto e nauseado, com alucinações, em direção a um meteorito, meio cônico, meio disforme, manchado por séculos de ghee e ocre. A multidão abre-se para mim e me permite atirar um guirlanda de jasmins sobre o yoni.

Uma semana mais tarde, em Katmandu, dei entrada no Hospital Missionário Germânico (por um mês) com hepatite. Um pequeno preço a pagar para todo aquele conhecimento - o fígado de algum coronel aposentado de uma história de Kipling! - mas eu conheço ela, eu conheço Kali. Sim, absolutamente o arquétipo de todo aquele horror, mas, para aqueles que a conhecem, ela se torna a mãe generosa. Mais tarde, numa caverna na selva além de Rishikish, meditei sobre Tara por muitos dias (com mantra, iantra, mudra, incenso e flores) e retornei à serenidade de Darjeeling e de suas visões benéficas.

Sua era deve conter horrores, pois a maioria de nós não pode compreendê-la ou alcançar a guirlanda de jasmins além do colar de crânios, percebendo até que ponto são a mesma coisa. Atravessar o caos, cavalgá-lo com um tigre, abraçá-lo (mesmo sexualmente) e absorver algo de sua shakti, sua força-vital - esses é o caminho da Kali Yuga. Niilismo criativo,. Para aqueles que seguem o caminho, ela promete iluminação e até mesmo riqueza, uma parcela de seu poder temporal.

A sexualidade e a violência servem como metáforas num poema que age diretamente sobre a consciência através da Imagem-inação - ou talvez nas circunstâncias corretas elas possam ser abertamente distribuídas e gozadas, embebidas com o sentido do sagrado de cada coisa, desde o êxtase e o vinho até o lixo e os cadáveres.

Aqueles que a ignoram ou a vêem fora de si mesmo estão arriscados de destruição. Aqueles que a adoram como ishta-devata, ou ser divino, degustam de sua Era do Ferro como se fosse ouro, conhecendo a alquimia de sua presença.

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